Andar por Porto Alegre após a enchente é como andar em outra cidade. Se Mário Quintana olhava para o mapa da cidade como quem examinava a anatomia de um corpo, anda-se pela capital gaúcha como quem examina as margens de um rio. É difícil desviar o olhar das hipnóticas marcas barrentas nas paredes que revelam até onde a água chegou.
Semana passada, fui almoçar com meu filho Beni no Centro. Ele estava me pedindo há tempos, parece que ele como todos os porto-alegrenses querem voltar aos locais que amam, para conferir se ainda estão lá. Sente-se o cheiro acre da água que tudo invadiu e deixou tudo coberto por uma superfície avermelhada ou amarronzada. Paramos para tirar uma foto em uma parede em que as marcas passavam de 1,80m.
O escritor John Koenig, em seu “Dicionário das Tristezas Obscuras”, inventou palavras para traduzir sentimentos e emoções ainda não nomeados, como, por exemplo, Kenopsia, “a atmosfera misteriosa e desamparada de um lugar que normalmente está cheio de gente, mas que agora está abandonado e quieto.”
Este é o sentimento de quem passava pelas antes amplas e movimentadas ruas do Centro. Não há pedestres, há pessoas trabalhando, carregando vassouras, baldes e esfregões. A situação é melhor que as ruas do Humaitá, de Canoas, ainda tomadas por montanhas de lixo. As ruas do Centro, vazias, parecem ainda estranhar que humanos andem por elas. Parecem estar nos esperando para contar a história de quando foram rio. Trazem o desamparo de um lugar que normalmente está cheio de gente.
Outro termo cunhado por Koenig é adomania, a sensação de que o futuro está chegando antes do previsto. Aquele futuro das mudanças climáticas, em que os eventos climáticos extremos são de maior intensidade e frequência chegou. Não são mais gráficos falando da evolução até 2050 mas são os bairros de Porto Alegre e Canoas debaixo d’água.
A Academia Brasileira de Letras já registra a definição de ecoansiedade, também chamada de ansiedade climática ou ansiedade ecológica, sendo definida como o “estado de inquietação e angústia desencadeado pela expectativa de graves consequências das mudanças climáticas e pela percepção de impotência diante dos danos irreversíveis ao meio ambiente.”
A American Psychology Association (APA – a Associação de Psicologia do EUA), destaca o ‘medo crônico de sofrer um cataclismo ambiental que ocorre ao observar o impacto”. Boa parte dos gaúchos sabe o que é isso: é a angústia ao ouvir a previsão de mais chuvas ou sentida quando são ouvidas as trovoadas que anunciam mais um temporal. E o barulho da chuva que sempre me acalmou e ajudou a dormir, hoje incomoda e angustia.
Os pesquisadores Ashlee Cunsolo e Neville R. Ellis, em artigo[1] publicado na prestigiada revista científica Nature Climate Change, falam em luto ecológico, o luto pelas perdas ecológicas, incluindo a perda de espécies, ecossistemas e paisagens significativas devido às mudanças ambientais. É um conceito que emergiu das experiências vividas pelas pessoas e que, a exemplo da ecoansiedade, mostra como as mudanças climáticas impactam nossa saúde mental.
Os pesquisadores afirmam que o luto ecológico é uma resposta natural ao sofrimento causado pelas perdas ambientais, especialmente para as pessoas que continuam vivendo, trabalhando e mantendo relações culturais com o ambiente natural. Esse sentimento tem potencial para ser sentido de forma mais forte e por mais pessoas à medida que as alterações do clima ganham mais impacto e velocidade.
Outro aspecto que os autores ressaltam é que testemunhar as perdas ecológicas pessoais aliado ou mesmo o sofrimento enfrentado por outros que sofrem suas próprias perdas nos mostram que as mudanças climáticas não são apenas um conceito científico abstrato. Mais que isso, exigem que estejamos abertos ao luto, individual e coletivo, como indivíduos e como sociedade.
Diante de tanta destruição, pode-se perguntar, como fez Patrícia Carneiro aqui na SLER, “quem se importa com as perdas afetivas? Com o impacto desta tragédia como sofrimento psíquico e social?”
Essas dimensões intangíveis, que não podem ser vistas ou tocadas, são iluminadas por conceitos como a ecoansiedade e o luto ecológico. Afinal, para enfrentar os desafios impostos pelos traumas trazidos pelo desastre climático é preciso corpo e mente sãos. E, se isto for com um belo almoço em família, ainda melhor.
[1] Ecological grief as a mental health response to climate change-related loss. Nature Climate Change | VOL 8 | APRIL 2018 | 275–28.
Foto da Capa: César Lopes / PMPA
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