De 4 de setembro a 25 de outubro, dentro das comemorações dos 250 anos da capital, uma exposição mostrará, através de bicos de pena do professor Günter Weimer (1939), imagens dos primórdios da arquitetura em Porto Alegre. Estará nas chamadas Salas do Tesouro, no andar superior do Memorial do Rio Grande do Sul.
Weimer é um dos mais importantes estudiosos da arquitetura regional, reconhecido pelo seu pioneirismo e pela vasta produção sobre o tema. Uma das características do seu trabalho é ilustrar os textos que escreve com desenhos em bico de pena ao invés de explorar a fotografia, como normalmente é feito. Foi professor na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), posteriormente, no Curso de Arquitetura da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Um de seus últimos livros, publicado e distribuído gratuitamente pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS) chama-se Arquitetura de Porto Alegre: os primórdios. Este trabalho é que gerou a iniciativa da arquiteta Ester Meyer em viabilizar a exposição.
É oportuno aproveitar este espaço para oferecer ao leitor que pretenda ir ao Memorial do Rio Grande do Sul, visitar a exposição acima citada, uma descrição de como era a povoação há dois séculos. Em 1820, Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) esteve em Porto Alegre e deixou um importante relato dos pontos mais significativos da cidade.
Em 21 de junho daquele ano, ele escreveu:
“Surpreendeu-me o movimento desta cidade, bem como o grande número de edifícios de dois andares e a grande quantidade de bancos aqui existentes. Percebe-se logo que Porto Alegre é uma cidade muito nova. Todas as casas são novas e muitas estão ainda em construção. Mas, depois do Rio de Janeiro, não vi cidade tão suja, talvez mesmo mais suja que a metrópole” (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 29).
Porto Alegre tinha quarenta e oito anos a contar da data de 26 de março de 1772, data de criação da freguesia. Se por um lado a cidade, e em especial o movimento da Rua da Praia – pelo comércio e pela atividade bancária, onde estavam a maioria dos prédios de dois andares – o surpreendeu positivamente, a sujeira chamou muito a sua atenção.
Um mês depois, em 27 de julho, nos descreve a povoação:
“A cidade de Porto Alegre dispõe-se em anfiteatro sobre um dos lados da colina de que falei, voltado para noroeste. Ela se compõe de três longas ruas principais que começam um pouco aquém da península (…), estendendo-se em todo o comprimento paralelamente ao lago, sendo atravessada por outras ruas muito mais curtas, traçadas sobre a encosta da colina. Várias dessas ruas transversais são calçadas, outras somente em parte, porém todas muito mal pavimentadas. Na Rua da Praia, que é a mais próxima do lago, existe diante de cada grupo de casas um passeio constituído por largas pedras chatas em frente do qual são colocados, de distância em distância, marcos estreitos e altos” (Idem, p. 40).
O professor Francisco Riopardense de Macedo (1921-2007) dizia que o centro de Porto Alegre está em uma ponta e não em uma península. Este local tem seu ponto máximo na altura da atual Rua Duque de Caxias, nas imediações da Catedral Metropolitana. Daquele ponto, a topografia oferece declividades em três direções; para noroeste, onde era o antigo porto, para o oeste, voltada para atual “ponta do gasômetro” e para sudeste, onde fica a atual rua Washington Luiz, que naquele tempo margeava o Guaíba, corretamente chamado de lago por Saint-Hilaire. Para explicar a topografia ao leitor, o viajante francês, mostra que a declividade das ruas, do lado noroeste, lembrava os degraus de um anfiteatro. Cita a existência de três ruas principais, que começavam aquém da ponta. Eram elas, a Rua da Igreja (hoje Rua Duque de Caxias, na parte mais elevada), a Rua da Ponte (atual Rua Riachuelo) e a Rua da Praia (hoje Rua dos Andradas, mas popularmente ainda conhecida pela denominação que ele conheceu). Cita as transversais a estas, dizendo que várias eram mal pavimentadas, quando eram. Vale lembrar que em Rio Pardo encontra-se a “Ladeira” (hoje Rua Júlio de Castilhos), tida como a primeira rua calçada da Capitania, fato ocorrido na primeira década do século XIX. Lá, devido ao declive, as pedras chatas foram dispostas do alinhamento das casas para o centro do logradouro, na forma de espinha de peixe, impedindo o escorregamento das pedras e facilitando o escoamento das águas pluviais. Este tipo de solução recebeu a denominação de calçamento “pé-de-moleque” (pedra chata e terra, análoga a rapadura de amendoim com açúcar). Já os marcos estreitos e altos que Saint-Hilaire se refere, trata-se provavelmente dos chamados “frades”, locais no qual eram amarrados os cavalos quando as pessoas apeavam destes animais para entrar em algum estabelecimento ou residência. Podemos imaginar que na época que o viajante aqui passou, eram de madeira. Posteriormente, Porto Alegre foi dotada (como ainda ´é encontrado na Rua da Ladeira de Rio Pardo), frades de arenito, de forma prismática, com uma meia esfera na parte superior, nos quais argolas eram fixadas para amarrar os equinos. Em Porto Alegre há um na Praça Argentina, na esquina da Avenida João Pessoa com a Osvaldo Aranha, na frente da antiga sede da Escola de Engenharia, lamentavelmente descuidado. Há outros no Museu de Porto Alegre, na Rua João Alfredo, na Cidade Baixa.
Saint-Hilaire seguiu dizendo que:
“As casas de Porto Alegre são cobertas de telhas, caiadas na frente, construídas em tijolo sobre alicerces de pedra; são bem conservadas. A maior parte possui sacadas. São em geral maiores que as das outras cidades do interior do Brasil e um grande número delas possui um andar além do térreo, e algumas têm mesmo dois” (Ibidem, p. 41).
Pela descrição, percebe-se que a povoação era composta de edificações brancas (pintadas de cal), não cita as térreas, destacando os sobrados com dois a três pisos, sendo que a maior parte tinha sacadas. O viajante descreve superficialmente a materialidade das mesmas. Não fala das esquadrias e não esclarece como eram as sacadas. Em geral, as aberturas eram de madeira, com verga reta ou em arcos abatidos. As telhas certamente eram em cerâmica do tipo capa e canal ou capa e bica, que genericamente as pessoas chamam de telha colonial.
Descreveu o centro econômico da vila:
“A Rua da Praia, que é a única comercial, é extremamente movimentada. Nela se encontram numerosas pessoas a pé e a cavalo, marinheiros e muitos negros carregando volumes diversos. É dotada de lojas muito bem instaladas, de vendas bem sortidas e de oficinas de diversas profissões. Quase na metade desta rua existe um grande cais dirigido para o lago, e ao qual se vai por uma ponte de madeira de cerca de cem passos de comprimento, guarnecida de parapeito e mantida sobre pilares de alvenaria. As mercadorias que aí se descarregam são recebidas na extremidade dessa ponte, sob um armazém de vinte e três passos de largura por trinta de comprimento, construído sobre oito pilastras de pedra em que se apoiam outras de madeira. A vista desse cais seria de lindo efeito para a cidade se não houvesse sido prejudicada pela construção de um edifício pesado e feio, à entrada da ponte, de quarenta passos, de comprimento, destinado à alfândega” (Ibidem, p. 41).
Saint-Hilaire confirma a vocação que a Rua da Praia teve desde o início; é uma rua comercial e de prestação de serviços. As lojas daquele tempo não possuíam obviamente vitrines. Quando ele diz que eram bem instaladas, quis dizer que possuíam mobiliário adequado àquela realidade. Certamente com armários e balcões para atendimento do público. No mapa da povoação em 1844, é possível perceber que o antigo Largo da Quitanda (depois Praça da Alfândega), foi corretamente descrito pelo viajante, que destaca o trapiche construído para chegar até os barcos que atracavam no armazém pelo qual as mercadorias eram recebidas. Detalha-os inclusive em suas dimensões e materialidade. Pela importância e significado que o local tinha para o povoado, lá é que foi construído o prédio da Alfândega (1819-1824), cujo resultado deixou a desejar na opinião do narrador. Aliás, se esqueceu de fornecer a outra dimensão da edificação (a largura).
Grosso modo podemos dizer que Porto Alegre era formada por uma área ao nível das águas (o Largo da Quitanda, onde estavam o comércio e os serviços) e uma parte alta (Altos da Praia, depois Praça da Matriz), onde se encontravam as edificações mais importantes da povoação. Era uma tradição portuguesa. Solução análoga a da Cidade do Porto ou Salvador, guardadas as devidas proporções.
Assim, ao concluir a descrição da área baixa, passa a tratar, no mesmo dia 27 de julho de 1820, da parte alta. Diz ele:
“Uma das três grandes ruas, chamada Rua da Igreja, estende-se sobre a crista da colina. É aí que ficam os três principais edifícios da cidade, o Palácio, a Igreja Paroquial e o Palácio da Justiça. São construídos alinhados e voltados para noroeste. Na outra face da rua, em frente, não existem edifícios, mas tão somente um muro de arrimo, a fim de que não seja prejudicada a vista daí descortinável. Abaixo desse muro, sobre o declive da colina, existe uma praça infelizmente muito irregular, cujo aterro é mantido por pedras soltas sobre o solo, formando tabuleiros dispostos em losango” (IBIDEM, p. 41).
Nessa passagem cita inicialmente as três das principais edificações, sobre as quais adiante se manifesta. Descreve inicialmente a praça (Altos da Praia, depois Praça da Matriz), seca e pavimentada por pedras formando losangos, situada abaixo de um muro de arrimo criado para nivelar a Rua da Igreja e tornar menos acentuada a declividade da primeira.
Sobre as três edificações diz que:
“O Palácio do Governador não passa de uma casa comum, de um andar e nove sacadas na frente. Mal dividido internamente, não possui uma só peça onde se possa reunir uma sociedade numerosa como a de Porto Alegre. O Palácio da Justiça, é muito mais mesquinho ainda, térreo. A Igreja Paroquial, cujo acesso se faz por uma escada, tem duas torres desiguais; é clara, bem ornamentada e tem dois altares, além dos que acompanham a capela-mor. Entretanto é muito pequena pois, segundo medi, conta apenas quarenta passos da capela-mor até a porta” (IBIDEM, p. 42).
Saint-Hilaire não exagerou. As construções eram modestas. O Palácio do Governador da Capitania (1773-1789), conhecido como “Palácio de Barro”, pelo uso da técnica da taipa de pilão, concebido segundo Günter Weimer, por Joaquim José Vieira (WEIMER, 2019, p. 33 e 90-91), não passava de um casarão de dois pisos, com nove aberturas em cada pavimento, com igual número de balcões de púlpito (sacadas) no segundo pavimento, já não atendia às necessidades da população. Ademais, como disse o viajante, era mal dividido internamente. Foi demolido em 1896, para a construção do atual Palácio Piratini.
A Igreja Matriz de Nossa Senhora Madre de Deus (projeto: 1774; construção: 1779-1794), que Athos Damasceno (1902-1975) disse que o projeto teria vindo do Rio de Janeiro, em 1774, sendo de autor desconhecido (DAMASCENO, 1971, p. 44), segundo Weimer, foi projetada em Porto Alegre, pelo mesmo Joaquim José Vieira (WEIMER, 2019, p. 94). Saint-Hilaire a viu com as torres desiguais. Sergio da Costa Franco (1926) afirma que a torre esquerda foi concluída em 1846, a mando do Conde de Caxias, quando Presidente da Província (FRANCO, 2018, p. 104). Na oportunidade sofreu alguns reparos. O viajante destaca que ela era bem iluminada (tudo indica que era uma igreja de nave única com corredores laterais), mas de pequenas dimensões. Tanto era, que possuía apenas cinco altares, segundo a descrição de Saint-Hilaire. O altar-mor (na capela-mor), dois acompanhando a capela-mor (adjacentes ao arco cruzeiro) e dois no interior da nave. Cinco anos antes das obras promovidas por Caxias, a Irmandade do Santíssimo Sacramento se dirigiu à Câmara ponderando “a necessidade que há de se levantar um novo templo para a Matriz, visto a que existir ser pequena e achar-se bastante arruinada” (IDEM, 2018, p. 104). A igreja viria a ser demolida na década de 1920, para dar início a construção da atual Catedral Metropolitana.
Já o terceiro prédio citado por Auguste Saint-Hilaire, o do “Palácio da Justiça”, o qual chamou de mesquinho e térreo, teria sido a sede da ”Casa da Junta da Real Fazenda” e posteriormente a sede da “Assembleia Provincial”. A edificação de planta retangular, térrea, com quatro águas e beirado, cuja data de construção deu-se por volta de 1780, teria sido feita para abrigar a Câmara que nela nunca se instalou. Seu projeto é atribuído ao mesmo Joaquim José Vieira (WEIMER, 2019, p. 110). Em meados do século XIX, recebeu um segundo piso, e a linguagem classicista jônica que ostenta, para servir de sede da Assembleia Provincial, até o fim do império e depois da Assembleia Legislativa, até 1967, quando foi inaugurado o atual Palácio Farroupilha. O projeto da ampliação foi feito pelo engenheiro alemão Georg Karl Phillip Theodor von Normann (1818-1862). Na fachada lateral, voltada para o Palácio Piratini, no térreo, foram mantidas as aberturas com vergas de arco abatido originais. As paredes do térreo são as únicas estruturas do século XVIII, ainda existentes na cidade.
A descrição da arquitetura daquela Porto Alegre vista pelo viajante francês prossegue com as citações sobre duas igrejas que não nomeou, a de Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora do Rosário. Assim narra:
“Muito menos importantes são os outros edifícios públicos de Porto Alegre. Além da igreja paroquial existem mais duas outras ainda não terminadas. Numa, contudo, já celebram missa, enquanto a outra, ainda não coberta, tem sua construção paralisada” (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 42).
Embora Saint-Hilaire não cite quais eram os templos, tratavam-se das igrejas de Nossa Senhora das Dores (1807-1906) e Igreja de Nossa Senhora do Rosário (1817-1827). A primeira, teve sua capela-mor concluída em 1813. O viajante viu a obra paralisada com a nave inconclusa, enquanto que na outra, apesar de inacabada, já rezavam missas. São desconhecidas nos dias de hoje as autorias dos projetos iniciais das duas igrejas. Sabe-se que a fachada da igreja de Nossa Senhora das Dores foi concluída pelo alemão Julius Weise (?-?). Já a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, finalizada na segunda metade da década de 1820, durou até meados do século XX, quando foi demolida para dar lugar a uma nova, com o mesmo orago, situada à Rua Vigário José Inácio, entre a Rua dos Andradas a atual Avenida Otávio Rocha. Uma perda lamentável para o patrimônio arquitetônico porto-alegrense.
Saint-Hilaire chega a descrever o entorno da Igreja de Nossa Senhora das Dores, onde se encontrava o pelourinho, o qual diz ser uma coluna coroada por um globo, o que reforça a presença da Câmara, naquela época, naquele local, na esquina da rua Direita, atual rua David Canabarro:
“Em frente da igreja, além dos armazéns e, portanto, próximo ao lago, vê-se uma coluna encabeçada por um globo, indicando que a cidade é a sede de uma comarca. Diante dela, construiu-se um dique de pedra destinado a servir de cais para os dois armazéns. Esse conjunto teria um belo efeito se a igreja estivesse pronta, se o terreno existente entre ela e os dois armazéns tivesse sido nivelado, e se estes, embora construídos sobre a mesma planta, não apresentassem diferenças tão chocantes” (SAINT-HILAIRE, Idem, p. 42).
Saint-Hilaire finaliza a descrição da arquitetura da povoação, citando o Hospital da Santa Casa de Misericórdia. Diz ele:
“Fora da cidade, sobre um dos pontos mais altos da colina onde ela se desenvolve, iniciou-se a construção de um hospital cujas proporções são tamanhas que talvez não seja terminado tão cedo. Mas sua posição foi escolhida com rara felicidade, ficando perfeitamente arejado, bastante distanciado da cidade para evitar contágios e ao mesmo tempo próximo quanto às facilidades de suprimento de médico e farmacêutico” (Idem).
O hospital por ele citado é o da Santa Casa de Misericórdia, o primeiro da Capitania. Naquela época estava em construção. Interessante é o comentário que realiza sobre a sua implantação: destaca seu afastamento das edificações da povoação, mas também a proximidade necessária para facilitar o acesso de profissionais da área da saúde. Não descreve a edificação. Na época estava concluída uma ala nos fundos do hospital, que hoje corresponde o pavilhão que está ao fundo do pátio da edificação original e a capela do Senhor dos Passos anexa ao mesmo.
Apesar das lacunas que se percebe na descrição de Saint-Hilaire, é um dos textos fundamentais para serem confrontados com os mapas de época, permitindo recompor o cenário da povoação do período colonial. Trata-se de um agradável passeio por aquela Porto Alegre que um dia existiu.
NOTAS:
DAMASCENO, Athos. Artes plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. Globo, 1971.
FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. Edigal, 5ª edição (revisada e ampliada), 2018.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821 (tradução de Leonam de Azeredo Penna). Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. USP, 1974.
WEIMER, Günter. Arquitetura de Porto Alegre: os primórdios. Porto Alegre: Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul (CAU/RS), 2019.