Após mais de dez anos, a Conferência de Avaliação do Plano Diretor de Porto Alegre (PDDUA-POA), a segunda etapa de um longo processo de revisão, ocorreu entre os dias 07 e 09 de março de 2023. O foco da revisão não está nos documentos. A disputa está no plano das ideias. Nessa arena, dois grupos antagônicos: cidadãos-ambientalistas de um lado e especuladores do ramo imobiliário (por que não classificar essa oligarquia de rentistas capitalistas?) de outro.
Então, como se deram essas disputas? Digo que a participação social fez a diferença. Participar importa e a coalizão das ideias ambientalistas — como a luta por uma cidade mais limpa, menos poluída, mais saudável, com menos agrotóxico e mais dignidade para as pessoas mais vulneráveis — venceu. Ao menos, por enquanto.
As tensões e falas distópicas produzidas pelos representantes de um capitalismo predatório foram assustadoras: de ameaças no melhor estilo patriarcal até tentativas de alteração das regras do jogo… durante o jogo.
Por que chamar alguns momentos de assustadores? Fiquem à vontade para utilizar outros adjetivos. Foram assustadores, pois se buscou remover deliberadamente o direito de sonhar um mundo social e ambiental mais equitativo.
Aqui relato um caso em especial para termos a dimensão dos tipos de práticas atualmente. Na discussão sobre “topo de morros”, um cidadão, advogado, pediu a palavra e alegou que não fazia nenhum sentido que o município tivesse uma legislação específica sobre o tema, uma vez que já existe uma no nível federal. O público presente, quase de modo uníssono, reagiu imediatamente e em bom tom. A proposta discutida ao longo do dia anterior foi, e ainda é, propor critérios mais protetivos à fauna, flora e comunidades (como as dos indígenas) que se encontram nos morros de Porto Alegre e não desejam, por exemplo, que os empreendimentos imobiliários também ameacem esses territórios e seus modos de vida.
Entre os argumentos do cidadão em questão, um dos pontos mais incisivos foi a afirmação em tom de ameaça ao público presente que caso a recomendação dele não fosse acatada, processos de judicialização poderiam ser mobilizados por ele e aqueles a quem esse representa. A judicialização em si não é um problema, uma vez que é uma prática do jogo democrático. Porém, forçar a aceitação de uma recomendação neoliberal predatória com ameaças jurídicas e morais é inaceitável do ponto de vista democrático.
Cabe ressaltar que na etapa de deliberação das sugestões dos cidadãos — incluindo duas recomendações (aceitas) deste que escreve — a recomendação por remover a proposição para a formulação de estratégias a nível municipal mais restritivas para os topos de morros foi rejeitada. Resultado: Porto Alegre terá diretrizes mais restritas à especulação imobiliária e mais específicas do que a atual legislação federal.
Ainda há muitas ideias em disputa: o que desejamos em relação às águas e às comunidades ribeirinhas de Porto Alegre, aos parques públicos (os queremos mais verdes com miniflorestas urbanas e corredores ecológicos ou privatizados com mais estacionamentos para mais automóveis e menos bicicletas?), as centenas de edifícios abandonados (necessários para habitações sociais, iremos destinar às pessoas em situação de rua), à demarcação dos territórios indígenas, à ampliação das ciclovias, entre tantas outras ideias e propostas da sociedade civil.
Foi dito que “tudo o que foi discutido estará disponível nos próximos dias no site do Plano Diretor”, segundo afirma a diretora de Planejamento Urbano da SMAMUS, Patrícia Tschoepke (informação disponível aqui). Se “tudo” estiver disponível no site do Plano Diretor, então essas linhas são uma redundância.
Sim, a participação social fez e faz a diferença. O esforço de praticar a cidadania — por acompanhar por três dias as discussões, mediações e votações — faz a diferença.
Talvez o céu não desabe hoje, não por enquanto. Vi algumas sementes utópicas sendo plantadas. Ainda precisamos, enquanto defensores da vida digna, mais justo e um ambiente saudável, como consta na nossa Constituição, criar mecanismos para acompanhar periodicamente as propostas aprovadas nesse PDDUA ainda em elaboração (Link oficial na Prefeitura e dos Relatórios).
Também é preciso criar instrumentos para que o poder público preste contas periodicamente (a cada trimestre? a cada semestre? a cada ano?), e não a cada dez anos (como prevê atualmente o PDDUA), para nós. É crucial levar essas discussões e eventos para as periferias, para as comunidades mais vulneráveis, para que elas de fato participem política e ativamente.
Cabe a nós, cidadãs e cidadãos, que temos o privilégio de acessar determinados espaços e informações, continuarmos a fomentar ideias pró-vida, pró-dignidade, pró-bioma, ideias de uma cidade inclusiva de fato. Afinal, a primeira disputa, e talvez uma das mais importantes, está no campo das ideias, mas as ideias precisam ser defendidas nos campos de batalhas que se apresentam.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube
Frederico Salmi – Cidadão, sociólogo e pesquisador da questão climática. Participa do Grupo Sustentável do POA Inquieta. É membro do Grupo de Pesquisas Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade (TEMAS | UFRGS) e do Programa AmazonFACE no Componente 5 — Impactos sócio-políticos e econômicos.