É estranho ficar de mãos dadas com estranhos. Foi a primeira coisa que pensei, ou senti, logo que entrei na corrente humana. Uma corrente que chegou a duzentos elos naquela tarde de sábado, 23 de novembro, neste estranho ano de 2024.
A corrente havia-se formado como ato de legítima defesa. Defesa de uma cultura. A nossa. Ainda em evolução, como é comum em culturas vivas, mas uma bela cultura. O que já está nela inscrito? Nosso desejo coletivo por uma cidade que pare em pé. Que não entre em colapso toda vez que o clima entrar em surto – e, como todos sabemos, daqui pra frente o clima vai surtar com frequência. Isso para começo de conversa. Pois desejamos também uma cidade (e um Estado, e um País) que se volte de forma decidida para a proteção, o cultivo e o usufruto coletivo de sua generosa Natureza. Mas qual é a ameaça? No caso, um pesado projeto de edificações no bairro Menino Deus, próximo ao shopping Praia de Belas, ao lado do Parque Marinha e do velho Guaíba.
À medida que a corrente avançava, no intuito de fechar um abraço, a estranheza foi cedendo lugar ao espanto. Espiando o terreno a partir da calçada e erguendo os olhos, tentávamos imaginar como ficaria este lugar se o complexo de edificações projetadas viesse a se materializar. Cinco prédios, quatro deles excedendo o limite de 52 metros de altura previsto no Plano Diretor: 85, 100, 130 metros de altura! A título de comparação, a execrada torre projetada para a rua Duque de Caxias, no centro da cidade, previa 41 andares, em torno de 98 metros. O morro de Santa Tereza tem 148 metros. Mas basta comparar com as edificações na rua ao lado, na Alter Cintra de Oliveira, para compreender o peso visual que teria naquela planície um complexo de prédios com até o dobro de altura. É opressivo.
Embora os projetistas venham garantindo impacto de vizinhança reduzido, como este adensamento se refletiria no conjunto da paisagem, naquele trecho da orla do Guaíba e sobre todos os prédios ao redor? Sombreamento, ventilação. Depreciação. Trata-se de um bairro em que predominam construções baixas. Como seria afetado o cotidiano de moradores e frequentadores, neste e em vários bairros próximos? Tanta gente a mais circulando entre suas ruas e avenidas. Água, luz, esgoto, internet para tantos novos endereços. Numa área que ficou alagada na enchente de maio. E, ao elevar o olhar, é impossível não imaginar também como as antes inexistentes barreiras de concreto afetariam as aves, a profusão de pássaros que ali se movem entre terras e águas. Os pássaros morrem por colidir nos vidros, morrem porque prédios altos provocam deslocamentos imprevistos de ar. Como perguntava alguém outro dia: quem os salvará?
Quem nos salvará?
Por estranho acaso, no dia do abraço no Menino Deus, encerrava-se no Azerbaijão mais uma COP, mais uma conferência mundial para tentar afastar a humanidade do colapso. Terminava num clima de esgotamento e frustração. Os trilhões reivindicados para ao menos mitigar os efeitos da devastação da natureza, em especial nos países menos culpados, mas mais atingidos, não vão rolar. Como que a sinalizar: se o dinheiro com frequência é fundamental, a ganância é sempre destrutiva – letal. Ou, na voz poética e às vezes profética de Caetano Veloso (que, aliás, cantou a beleza do Menino Deus): a força da grana, que ergue e destrói coisas belas.
Ao nos aproximarmos do fim da caminhada de mãos dadas, não restava estranheza nem espanto. Como outros que partilharam daquele abraço, me senti recompensada, como quem vive um momento de alto valor simbólico. De certa forma, histórico. Porque reinaugura uma participatividade que também compõe nossa cultura. Não por acaso, estavam ali, junto aos moradores do bairro, líderes comunitários, ativistas ambientais, jornalistas, escritores, urbanistas. Também, presentes ou representados, uma dezena de detentores de mandatos eletivos, entre vereadores e deputados.
Uma arquiteta-urbanista acabou por expressar um sentimento geral entre os manifestantes:
– Não somos contra progresso ou edifícios, mas hoje parece que não temos mais democracia em Porto Alegre, pois se cogita autorizar, sem amplo debate qualificado nem estudo aprofundado, obras que afrontam as leis e os regulamentos da cidade. Não se pode mais simplesmente passar por cima de tudo. Endereçamos estas questões ao grupo que está à frente disso. É uma empresa que cresceu aqui, sempre teve bom conceito na comunidade, os porto-alegrenses prestigiam os supermercados Zaffari. Nós nos lembramos de seus comerciais de final de ano, que em belas imagens e músicas enaltecem nossa cidade: “Porto Alegre é demais”. Mas se Porto Alegre tem um “jeito legal”, por que querem transformá-la tanto, verticalizar como se aqui fosse Camboriú?
Pois é.
Lilian Dreyer é jornalista, editora e escritora. Desenvolveu atuação profissional e militante em diferentes organizações ligadas ao cooperativismo e à ecologia. É autora, entre outros títulos, de Sinfonia Inacabada, biografia de José Lutzenberger, e Depois de Tudo, retrato biográfico de Augusto Carneiro.
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Foto da Capa: Reprodução do Facebook