Ser nômade digital não é para qualquer um. Sei bem e, apesar de entusiasta do assunto, conheço os pormenores do desafio.
Em primeiro lugar, é preciso muito desprendimento. Não são muitos os mortais com desapego suficiente para deixar para trás amigos, família e tudo o que possuem até aquele momento, o que inclui a coleção de álbuns da Copa, por óbvio.
Passado esse primeiro estágio da decisão, temos a questão do tipo de trabalho. É necessário ter um emprego que não apenas possibilite o trabalho remoto, mas também e idealmente o trabalho assíncrono. Conheço algumas pessoas que desistiram do nomadismo quando tiveram que entrar em uma reunião às 23h em Melbourne, enquanto os novos amigos já estavam todos embalados em alguma curtição que não teriam chance de alcançá-los ainda conscientes.
E, finalmente, temos o contracheque (ou holerite, como preferem os paulistas). Ao menos quem quiser usar o recém-lançado visto para nômades digitais de Portugal, no qual é necessário comprovar vencimentos mensais mínimos de R$ 25 mil, além de outros requisitos mais simples.
Portugal é o mais recente país europeu a ter um programa de estadia temporária para quem trabalha remotamente. O visto está disponível para profissionais com vínculos e rendimentos comprovados e que queiram viver cá por até um ano.
O programa segue o modelo já adotado por outros países como Estônia, Grécia, Noruega e Malta. Até o Brasil já tem um visto do gênero, mas recebeu menos de 200 pedidos no último ano. Parece que o fato de termos um país maravilhoso e diverso, quando o critério são os cenários (cidades e natureza) e conhecido pela diversão, não é o suficiente para mitigar quesitos como segurança, qualidade de vida, internet e baixo custo. O ranking e os critérios relacionados no site www.nomadlist.com deixam isso muito claro.
Mas vamos voltar para a Terrinha. A ideia por aqui é melhorar a relação com os nômades digitais, que já podiam trabalhar daqui usando o visto tipo D7. Contudo, com esse, eram obrigados a permanecer no país um número mínimo de dias do ano, o que garantia ao governo português o ingresso de receitas importantes.
Mesmo antes do novo visto, Portugal já era um dos principais destinos dos nômades digitais. Só a cidade do Porto, com 230 mil habitantes, recebeu mais de 10 mil “trabalhadores itinerantes” no ano passado.
Holandeses, franceses, alemães e até norte-americanos (que são os que mais solicitam visto desde 2021) já tem o país como destino preferido para viver e trabalhar. Aqui, eles encontram sol, calor, boa comida e bons vinhos, segurança e belezas naturais aliadas a um baixo custo de vida.
Mesmo com a inflação e a alta galopante no custo dos imóveis (já compatível com as principais cidades europeias), viver aqui é raso de barato se comparado aos grandes centros financeiros e tecnológicos. Um norueguês, por exemplo, cujo salário médio é € 5 mil, se sente um milionário no Algarve – com o grande benefício de ter um mar “bem quentinho” perto de si.
Mas para os brasileiros será que vale a pena? A primeira questão está no poder aquisitivo e na comprovação de renda. Se pensarmos que apenas 1% dos brasileiros ganham mais de R$ 28 mil, teremos pouco mais de 2 milhões de pessoas elegíveis ao visto.
E vamos cortar ainda mais se pensarmos que nem todos podem usar o trabalho remoto. Alguns poucos são riquíssimos e sobrevoam os problemas do país de helicóptero. E outros tantos simplesmente não querem sair do país e desejam construir suas vidas em terras tupiniquins por convicção.
Pois bem, mesmo com esse público restrito, ainda entendo que existe um grande perigo para as empresas brasileiras.
A meu ver, o nomadismo digital soma-se a outros fatores e pode ser um relevante gatilho facilitador de saída para a elite de nossos profissionais, que poderá legalizar-se ainda trabalhando para o Brasil. Feito isso, passa a ser fácil encontrar oportunidades em empresas portuguesas ou de outras bandeiras, que estão a montar sedes lusitanas para suportar os talentos que trabalham remotamente para o resto da Europa.
Muitas companhias brasileiras têm feito o mesmo, é claro, mas ainda tratando a Europa como um ambiente para testes de suas teses e movimentos internacionais. Sem velocidade nos movimentos e relevância nas novas praças, deixam destacadas as fragilidades da economia, do dinheiro (câmbio) e das oportunidades construídas a partir do Brasil.
Se já temos falado tanto de formação de profissionais e dos desafios de fazermos isso estruturalmente, agora, também precisamos colocar em pauta a reflexão a respeito de nossa competitividade para manter e contratar talentos em outras praças, mesmo que isso pareça tão distante.