Cena 1
Sentadinho no último degrau da enorme escadaria de mármore daquele saguão de teto muito alto, cinza, frio e completamente vazio, eu via, lá embaixo, dona Irene, a velhinha da faxina, ajoelhada no chão, em meio aos seus apetrechos de limpeza. Pra lá, pra cá, — lenta e enérgica, manobrava escovas, sabão, água e rodo — pra lá, pra cá, — não se ouvia voz alguma; só silêncio.
De quando em vez, um olhar, um aceno ou sorriso para o remanescente da turma C do Jardim de Infância, cujo responsável ainda não aparecera para levá-lo de volta à casa. Sorriso e olhar que eram o único gesto de calor humano que recebia em meio àquele vazio cinza, frio, eloquente. Muita angústia, abandono, era o que sentia, sem saber defini-los. Tinha três anos. A escola ficava num terreno na confluência das avenidas José Bonifácio e Osvaldo Aranha.
Cena 2
A simples menção do nome Encouraçado Potemkin, o icônico filme de Serguei Eisenstein, de 1925, me desperta a lembrança da descoberta do cinema soviético, nos idos dos anos 1950. E, do filme, dentre todas as suas qualidades, explode na tela a cena do massacre da escadaria de Odessa, durante as manifestações populares na Revolução de 1905.
São as botas negras e reluzentes, em formação, descendo as escadas, tratorando os populares, os que reagem, os que caem, os que fogem. Tomadas de cena de cima pra baixo e de baixo pra cima, dramáticas, detalhes, tiros, corpos que caem e, em meio a tudo isto, as mães, os filhos e o inesquecível carrinho, com um bebê, descendo descontrolado. Seminal.
Resenha
A tomada final da cena da escadaria — da minha — terminou em clima de redenção, com dona Irene, alegre, recebendo Tio Gildo, meu herói, quando ele, esbaforido, sorridente e elegante, como sempre, chegou para me resgatar; havia esquecido que era o dia dele de me buscar na escola, revezando com minha mãe; morávamos muito próximos, lá pras bandas da Venâncio Aires.
Em 1983, estive em Porto Alegre. Festa de Bodas na família. Aproveitei e dei uma volta na Redenção. Revi minha escolinha, que, então, arquiteto formado, percebi não ser aquilo tudo em dimensão, altura, vazio, etc. Questão de escala humana; eu entendia, então, as minhas sensações espaciais no meu tempo.
Em 1987, o cineasta americano Brian De Palma realizou o excelente filme “Os Intocáveis”. Admirador do cinema de Eiseinstein, incluiu na ação do seu filme a cena icônica do cineasta russo, com recursos cinematográficos atualizados, em temática, em cores, figurinos, música, não deixando de acontecer o detalhe do carrinho do bebê, off course… Bela cena, bela homenagem.
The End
Vá lá saber por que, durante tantos anos, ao mencionar uma das duas cenas descritas, nunca me foi possível deixar de lembrar, rever e mencionar a outra, com igual intensidade e prazer! Nunca.
Esta, mais uma vez, quando resolvi escrever sobre cinema. Dizem que não tem problema, Freud explica… Então, tá. Vida que segue.
Jacob B. Goldemberg é arquiteto e professor. Já publicou os seguintes livros: Arquitetura: Espaço-Vida (1978), Arquitetura, Escritos (1998), O Essencial do Livro dos Livros – Contocrônicas, umas tantas (Ebook – Amazon) e Sobre Judeus, Hebreus e um certo Jesus (2024).
Foto da Capa: Reprodução
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