A cultura negra no Brasil é um continuum da sabedoria ancestral e das práticas culturais trazidas pelos africanos escravizados. Essa herança rica e multifacetada, acredito, influencia e molda a identidade brasileira, funcionando como uma fonte de resistência e fortalecimento para as pessoas negras.
Na última prova do ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio, que ocorreu depois de eu ter começado a escrever este texto, foi dado como tema para a redação “Os desafios para a valorização da herança africana no Brasil”.
Certamente, este tema foi de alívio para tantos estudantes, mas de surpresa e até indignação por outros tantos. Mas o que mais chama a atenção neste momento não foi o tema em si e, sim, a proposta corajosa do mesmo. Me mobilizou a pensar na coragem de jogar no bojo da discussão acadêmica uma proposta de debater o Brasil com os brasileiros. Após o último censo, verificamos a maioria negra (população preta e parda) no país, chegando ao percentual de 55,5%.
Sem dúvida, isso é resultado da forja sistemática que intelectuais negras e negros, coletivizados em movimentos sociais e políticos, assim como pesquisadores acadêmicos espalhados pelo Brasil afora, vêm construindo. Cabe a mim, aqui, trazer a potência de algumas intelectuais que, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, balançavam as estruturas racistas de nossa sociedade. Elas ainda são ilustres desconhecidas da grande maioria da população, mas a partir de pautas mais frequentes, como a do tema do ENEM, podem aparecer cada vez mais fortes e embasadoras, pois elaboraram e problematizaram os conceitos que veremos a seguir.
Aquilombamento – Conceito explorado pela historiadora Maria Beatriz Nascimento, refere-se à formação de quilombos, não somente aqueles em que, na época da escravização no Brasil, foram criados pelos negros que escapavam do trabalho forçado e das senzalas. Diz respeito, também, aos espaços de resistência e autonomia para a população negra. Os quilombos não apenas representam a luta pela liberdade, mas também preservam e, consequentemente, transmitem saberes ancestrais e resistência coletiva. Aquilombar-se é, portanto, um ato de resgate e de valorização das raízes culturais, formando redes de solidariedade e autoafirmação, que na atualidade se traduz em todas as formas de reunião e coletivização negra.
Amefricanidade – A intelectual Lélia Gonzalez forjou este conceito propondo uma fusão das culturas africanas e ameríndias, que se fundiram na diáspora africana. Essa visão desafia as fronteiras geográficas e culturais impostas pela colonialidade, destacando a integração e a contribuição significativa dos povos africanos na construção das Américas. Junto a essa fusão entre povos, o Pretuguês, outro conceito cunhado por Gonzalez, celebra o hibridismo que nasceu dessa mistura cultural. Ele reflete não a incapacidade de aprender o “português correto”, como muito se enfatizava na cultura erudita, mas sim a resistência e a adaptação das culturas africanas ao cotidiano em terras ameríndias, dominadas pelos colonizadores europeus.
Escrevivência – Termo cunhado por Conceição Evaristo, introduziu o conceito onde a escrita se torna um meio de sobrevivência e resistência negra. As narrativas, como enfatiza a intelectual e escritora, portanto, as escrevivências, são embebidas na vivência e na memória das mulheres negras, transformando histórias pessoais em testemunhos universais de opressão e superação. A escrevivência é um resgate da oralidade ancestral e uma ponte para o futuro, garantindo que as vozes negras continuem a ressoar, não somente nas vozes, mas nos livros.
A junção desses conceitos – aquilombamento, amefricanidade, pretuguês e escrevivência – revela a imensa potência da cultura negra, que, enraizada na sabedoria ancestral, continua a renovar-se e a influenciar a sociedade brasileira na contemporaneidade, mesmo que não percebamos. A resistência cultural negra é um ato contínuo de recriação e reafirmação das identidades negras, permitindo que essas vozes persistam e prosperem, mesmo diante das adversidades que são criadas pelo racismo cotidiano.
Esses elementos formam um panorama rico e inspirador, evidenciando que a cultura negra não é apenas uma herança a ser preservada, mas também uma força vital e dinâmica para os seus descendentes, que remonta o passado não somente do sofrimento, mas molda o presente e o futuro. As sabedorias ancestrais são, portanto, uma fonte inesgotável de inspiração, resistindo ao apagamento e mantendo-se viva através das gerações.
Mas voltando à pergunta do ENEM e refletindo com as leitoras e leitores desta coluna, ouso botar em prática e narrar que o aquilombamento, no Rio Grande do Sul, pode ser observado nas comunidades quilombolas existentes, certificadas ou não, como o bicentenário Quilombo de Casca, no município de Mostardas, no sul do estado, onde se mantêm vivas as tradições e a luta por reconhecimento e direitos. Também os coletivos de mulheres negras, estudantes negros, artistas e empreendedores, que por necessidade se tornam espaços de preservação cultural, afetividade e resistência, fortalecem a identidade negra dessas pessoas, sempre impondo a presença dos antepassados no estado.
Soma-se a estes a amefricanidade, que pode ser vista na influência da cultura afroindígena brasileira, em festas e manifestações culturais e religiosas, tais como o Carnaval de Porto Alegre, de Uruguaiana e a Umbanda. Nesses eventos, a fusão de elementos africanos e indígenas fica evidente.
O pretuguês encontra expressão nas gírias e nas linguagens utilizadas em comunidades negras, especialmente nas periferias. Em Porto Alegre e na Região Metropolitana, não seria diferente. A fala cotidiana dessas comunidades é um reflexo da resistência e da adaptação linguística, mantendo viva a herança africana através da linguagem, muito evidenciada nas batalhas de rimas – os Slams.
Assim como a linguagem, a escrevivência pode ser exemplificada pelos escritores e escritoras negros que utilizam a literatura como forma de expressão, encontro. Podemos citar o Coletivo de Escritores Negros e o Sarau Sopapo Poético.
Acredito que esses exemplos tenham mostrado como a potência da cultura negra, enraizada na sabedoria ancestral, está manifestada de forma vibrante na cultura brasileira e também no Rio Grande do Sul. Embora este estado invisibilize a cultura negra e indígena, elas seguem enriquecendo o tecido cultural da região e do país, reafirmando a importância de suas contribuições históricas e contemporâneas.
Às pessoas propositoras do tema da redação do ENEM, meus parabéns. Para aqueles que conseguiram elencar outras influências e autores, desejo sorte na avaliação. Para aqueles que não tinham subsídios para desenvolver a redação, espero que eu tenha colaborado para que, futuramente, em uma conversa ou em outras oportunidades de desenvolver sobre o assunto, haja mais liberdade, espaço e vontade de se pensar o Brasil seja pelas lentes daquelas e daqueles que por séculos foram invisibilizados em nossa sociedade.
Nina Fola, mãe de Aretha e Malyck, é multiartista, socióloga, atuante nos coletivos @afroentes, @coletivoatinuke e @odaba.br. Aborda a questão de raça e gênero em todos os seus trabalhos acadêmicos, artísticos e profissionais. Gestora do @cavalodeideias, uma consultoria em diversidade e inclusão onde faz palestras e formações. (@ninafola)
Foto da Capa: Montagem Odabá / Arquivo Nacional, Projeto Lélia González Vive e Aline Macedo
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