Ia eu, com meus vinte e dois anos, de calção, camiseta e tênis, pela avenida Praia de Belas, em Porto Alegre, em direção ao parque Marinha do Brasil para jogar futebol. Avisto, no meio do caminho, sentado numa mesa de um bar, o Nei Lisboa bebendo uma cerveja.
Volto rapidamente para a minha casa, na rua Botafogo, e pego um exemplar do meu livro de poesia Viagem dos olhos, lançado pela Coolírica. Escrevo uma dedicatória: “Para o Nei Lisboa, em troca”. Assino e volto correndo até o bar. Ele ainda estava ali.
Digo meu nome e dou o livro de presente. Ele abre, lê a dedicatória e pergunta: Em troca do quê? Eu respondo que já fui a vários shows dele, tenho seus discos, ouço suas músicas. Agora era a sua vez de ler alguma coisa minha.
Em 1985, ano desse encontro, Nei já havia lançado dois discos: Pra viajar no cosmos não precisa gasolina, de 83, e Noves fora, de 84. O primeiro foi feito de maneira independente, através de um financiamento coletivo chamado Neilisbônus. Era o registro de canções que sabíamos de cor por frequentar seus shows.
Esse long play agora está sendo relançado pela Toca do Disco, como o primeiro vinil dessa loja que existe desde 1989. Foi feito todo um trabalho de reconstrução da arte da capa, de pedidos de autorização de direitos, comandado pela Bruna Paulin.
Uma coisa que chama a atenção na discografia do Nei Lisboa é a consistência da obra como um todo. São onze álbuns. Dez são de composições autorais. O único que não tem canções dele é o Hi-Fi, de 1998, em que interpreta composições clássicas do rock e do pop em língua inglesa.
A lista tem, além dos já citados, Carecas da Jamaica (1987), Hein (1988), Amém (1993), Cena Beatnik (2001), Relógios de sol (2003), Translucidação (2006), A vida inteira (2013), Telas, tramas e trapaças do novo mundo (2015). E ainda o EP Pandora, de 2021, com cinco canções.
Entre blues, baladas, folk, rock e algumas variações que incluem candombe, frevo e um pouquinho de mpb, o que dá unidade ao seu trabalho é o genial letrista. E, quando digo letrista, não estou falando do texto lido, mas sim cantado. São letras que soam perfeitamente dentro das melodias, com uma construção em que uma coisa não vive sem a outra, como no trabalho de todo grande compositor de música popular.
São canções com letras que falam desde os sentimentos pessoais, afetivos, amorosos até o olhar para o coletivo. Da revisão à visão de mundo da sua geração ao olhar crítico sobre o Brasil e seus caminhos e descaminhos, ouvir Nei Lisboa é um convite a viajar no universo de um artista que mantém a alta qualidade criativa há mais de quarenta anos.
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Foto da Capa: Reprodução do Youtube