O título deste artigo é uma provocação. Dirigida, primeiramente, à enxurrada de artigos pouco imaginativos que há mais ou menos uns 10 anos povoam a internet com textos “pensata” com “precisamos falar sobre alguma coisa” no título, em um rescaldo do impacto no discurso público provocado pelo romance e mais tarde pelo filme Precisamos Falar sobre o Kevin. A segunda provocação vem do fato de que se tem uma coisa que precisamos fazer cada vez mais neste momento da história é falar sobre os miseráveis, assim, em um sentido mais amplo – embora meus colegas jornalistas tenham preferido deliberadamente falar sobre “mercado”, “empreendedorismo”, “Risco Brasil” e “taxas de juros” – coisas que têm impacto direto na vida dos miseráveis, certo, mas esse impacto geralmente costuma ser o de deixá-los ainda mais miseráveis com a concentração crescente de renda no país.
E a terceira provocação vem do fato de que eu também neste texto não vou falar dos miseráveis, esses que a própria Bíblia diz que “sempre os tereis convosco”. Não sou qualificado o bastante para dissertar em amplitude sobre miseráveis, então vou falar de Os Miseráveis, clássico romance francês de Victor Hugo (1802– 1885) – e, assim, vou tangenciar um pouco o assunto por tabela. Sigam comigo que vocês verão como. Além do mais, em algum momento do ano passado, a Sler aqui fez uma pesquisa com seus leitores e alguns dos resultados indicavam que nosso público gostaria de ver mais textos sobre livros, então, decidi dar ao povo o que o povo quer…
Os Miseráveis é um marco fundador para toda uma corrente de representação da sociedade – o intelectual alemão Erich Auerbach, em seu clássico Mímesis (Perspectiva, 1998), aponta Victor Hugo como a chave pioneira, ainda que embrionária, da escola realista, por quebrar com a estética clássica anterior que afastava o espírito trágico ou sublime da vida cotidiana. A popularidade da obra não é de hoje. Adaptado para várias mídias, o livro foi best-seller em seu tempo, e seu autor, tachado oficialmente de perigoso. Victor Hugo não foi apenas um titã literário (posição que alcançou ainda em vida por esforços conscientes, ainda que muitas vezes tenha sido contestado, por seus contemporâneos e pelos pósteros, pela forma autocomplacente como insistia em impor tal condição ao mundo). Em suma, ele foi também um autor com o que hoje com certeza chamaríamos de um impecável senso marqueteiro.
Revisões
A primeira sinopse para o livro, então chamado de As Misérias, foi vendida a seus editores em 1845, mas a ideia o assombrava desde os anos 1820. Já consagrado quando finalmente terminou sua magnum opus, em 1861, o escritor vivia no exílio na ilha de Guernsey, no Canal da Mancha, pela oposição feroz que havia feito a Napoleão III (a quem chamava de Napoléon, Le Petit, ou “Napoleão, o Pequeno”). A preparação do romance, portanto, foi feita por correspondência, com provas enviadas para o escritor por navio: “Todos os dias, durante oito horas, ele fazia correções, acrescentando mais do que riscava, aguilhoado pelo horário do Correio e o penacho de fumaça expelido pelo paquete postal no porto embaixo.“, escreve seu biógrafo Graham Robb em Victor Hugo: uma Biografia (Record, 2000).
Além de enlouquecer os tipógrafos tendo sempre algo a acrescentar a seu romance já imenso, Victor Hugo também comandou, de sua ilha rochosa, a estratégia, bastante moderna se analisada com cuidado, de divulgação da obra e de “gestão de crise” das prováveis polêmicas que o livro fatalmente suscitaria. Hugo aconselhou seus editores a fazerem propaganda maciça na França sobre o papel na trama da batalha de Waterloo, ferida nacional que marcou a derrota definitiva de Napoleão Bonaparte. Como escreveu a seu editor, em carta citada por Robb na mesma biografia:
“Expõe o lado nacionalista do livro, joga com o sentimento patriótico, faze Persigny [ministro do Interior] sentir vergonha antecipada por proibir uma obra em que Ney [o marechal], avô de sua mulher, é finalmente justificado. Torna-lhes impossível confiscá-lo, dizendo que se trata da batalha de Waterloo ganha pela França“.
Curiosamente, o trecho sobre a batalha de Waterloo, como Hugo o “vende” nessa correspondência, é meio propaganda enganosa. Na obra, a visita ao campo de batalha abre o segundo volume, Cosette, como um prólogo prolixo para a apresentação de monsieur Thenardier, o vigarista repulsivo que será fundamental para partes posteriores da trama, uma vez que são ele e sua esposa os guardiões legais de Cosette, criança que o fugitivo protagonista Jean Valjean prometeu resgatar. A parte de Waterloo é uma espécie de desconcertante precursor do jornalismo literário, com uma narração que descreve as mudanças que se operaram no campo de batalha, a situação do lugar quando a guerra foi travada, e que narra com um grande domínio técnico de espaço as movimentações e o caos do choque das tropas.
Agruras de um escritor moderno
Os Miseráveis foi lançado com uma campanha publicitária que incluía anúncios espalhados pela Europa e até mesmo pelo então Império do Brasil: “Publicou-se a primeira parte de Les Miserables (Fantine) em seguida a uma monumental campanha publicitária em Paris, Londres, Bruxelas, Leipzig, Roterdã, Madri, Milão, Turim, Nápoles, Varsóvia, Pest, São Petersburgo e Rio de Janeiro“. O resultado foi que milhares de exemplares se esgotaram quando o livro foi publicado, de abril a junho de 1862, em 10 volumes. Precursor do marketing, o livro também foi um precursor da moderna pirataria. Em Bruxelas, a obra vazou antes do lançamento para gráficas clandestinas, e haviam 21 edições não autorizadas apenas um mês após a publicação do primeiro do primeiro volume.
Victor Hugo também foi um dos primeiros escritores profissionais ao estilo contemporâneo: vivia do que escrevia, negociava contratos com ferocidade leonina e tinha um entendimento profundo do mercado editorial de seu tempo. Se a isso for aliada a amplitude de seu público, não é de estranhar que seu autor tenha sido considerado um homem perigoso e o livro tenha sido julgado por seu conteúdo ideológico desde o momento em que foi publicado, por contemporâneos como os Goncourt ou Perrot de Chezelles, ou por críticos tardios como Litton Strachey – mesmo um realista como Stendhal considerava Hugo um ídolo que tinha de derrubar antes de estabelecer seu projeto literário.
Adaptações
Pela extensão de Os Miseráveis, as adaptações para outras linguagens normalmente enxugam a história até o osso. Fantine, por exemplo, mãe de Cosette, ocupa, na obra, um espaço pequeno, aparece apenas na primeira parte. Nesse sentido, eu aqui, leitor antigo, achei muito divertida a decepção nas redes sociais de quem assistiu ao musical mais recente com a Anne Hathaway (foto da capa) e estranhou o fato de que ela morria com 15 minutos de cena. Como diz aquele meme dos jovens de hoje: me diga que você nunca leu Os Miseráveis sem dizer que você não leu Os Miseráveis. Foi assim também com a versão da personagem interpretada por Uma Thurman nos anos 1990. Javert é sempre retratado em qualquer uma dessas adaptações como um homem de tal modo obcecado em prender outra vez o fugitivo Jean Valjean que se torna um vilão maniqueísta – quando seu retrato no livro é menos o de um homem perverso, e mais o de um homem virtuoso que coloca sua retidão a serviço de algo que está viciado desde a origem: o próprio sistema.
Também são comuns, inclusive no Brasil, edições adaptadas, enxugando as 3,1 mil páginas do original para um tamanho mais administrável – o que deita por terra muitas das longuíssimas digressões que Victor Hugo usava para dar um quadro geral da gananciosa sociedade francesa, e apontá-la como a verdadeira responsável pelo crime, por empurrar milhares à miséria. Por aqui, a mais recente edição integral foi publicada pela Companhia das Letras em uma edição do seu selo Penguin, com tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros e apresentação de Renato Janine Ribeiro – aliás, essa é a republicação pela companhia da mesma tradução que a finada e muito saudosa Cosac/Naify havia lançado em dois volumes uns 10 anos antes. Uma boa adaptação francesa, em quadrinhos, com roteiro de Daniel Bardet e desenhos de Bernard Capo, foi lançada pela L&PM. A versão em filme mais recente, essa que circulou por toda parte com o Hugh Jackman e a já mencionada Anne Hathaway, não é uma adaptação do livro especificamente, mas do musical de sucesso para os palcos norte-americanos – com uma partitura bem pouco inventiva, diga-se. Uma versão lançada em minissérie uns poucos anos depois do musical, com Lily Collins e Dominic West nos papéis principais, produzida pela BBC e pela PBS, era mais apegada à trama do livro, mas sofria um pouco com o flagrante baixo orçamento, às vezes assemelhando-se a teatro filmado.
A mensagem
Mas voltando ao essencial deste texto. Eu disse antes que o livro foi considerado “perigoso” não apenas pelo Estado francês, na época nas mãos de um homem de quem Victor Hugo era um crítico feroz, mas também por outros críticos. Mas o que havia de tão “perigoso” na obra, afinal? Para as autoridades daquele tempo e lugar, o perigo estava na visão de mundo do autor, uma forma particular e reformista (e um tanto inefetiva por seu caráter politicamente vago) de socialismo, que acreditava mais na convivência colaborativa entre as classes, mediada por uma espécie de espectro moral humanista – em vez do “espectro do comunismo” de seus contemporâneos Marx e Engels, que Hugo, político de carreira, identificava com a anarquia.
O que impressiona, para além da extensão da obra, da monumentalidade de suas ambições, é como, trocando os elementos mais superficiais da cronologia e da tecnologia ainda estamos, dois séculos depois, lidando com muitas questões ainda esboçadas no livro. Se Hugo foi um escritor que antecipou muitas questões ainda presentes para autores nossos contemporâneos, também sua visão da sociedade dialoga com noções modernas ainda vigentes no pensamento social – e atacadas até hoje pelo conservadorismo político. Seus personagens “miseráveis” não são maus por si só, mas criaturas empurradas para o crime e a degradação em busca da sobrevivência em meio à miséria em que vivem. Essa miséria às vezes é apresentada no livro como fruto de decisões impensadas dos personagens, como a gravidez de Fantine após um verão de paixão inconsequente. Mas também aí jaz o germe de uma poderosa crítica de classe e gênero, uma vez que o homem que a engravidou, um estudante filhinho de papai, volta para sua vida sem ser perturbado pela “aventura” e o peso das escolhas de ambos recai apenas sobre ela.
O retrato do policial Javert costuma perder as nuanças que tem quando lido com má vontade. Sua obsessão por impor uma pena pendente a um homem que claramente se regenerou sozinho o estabelece como um “fanático da decência”, em uma construção que provavelmente hoje desagradaria os que reclamam dos retratos ficcionais desabonadores da polícia (quando a própria polícia muitas vezes se esforça para se sair pior na realidade do que nas suas representações ficcionais, como mostra o caso ocorrido em Porto Alegre com o homem negro que foi esfaqueado por um homem branco e quem acabou preso foi o homem atacado, enquanto o cara branco teve a cortesia de poder ir pra casa trocar de roupa e guardar a arma da agressão).
Mas não é preciso forçar muito a interpretação para ver que o próprio livro de Hugo já traz em seu cerne uma dicotomia inescapável entre a “face humana” da miséria representada por Jean Valjean, a quem acompanhamos de perto, e a desumanização quase maquinal de um Javert que vive mais para fazer valer a letra do código do que aplicar seus verdadeiros princípios. Mais para honrar as instituições que aplicam a Justiça do que para aplicar a Justiça de fato – e não por acaso, quando ele finalmente toma consciência dessa contradição vital no cerne de sua visão de mundo, tanto ele quanto sua realidade desmoronam ao ponto da aniquilação. Não reclamem comigo, reclamem com o autor.
Então, ao falar de Os Miseráveis, falamos inescapavelmente de uma representação “dos miseráveis”, esses que “estarão sempre” conosco. Embora por vezes se perca numa visão pietista, muito vinculada a uma religiosidade burguesa que deixa de fora algumas peças essenciais do quebra-cabeça, Os Miseráveis ainda permanece em parte tristemente atual. Em especial na sua condenação dos efeitos inevitáveis de uma sociedade desigual e no seu tema mais poderoso: a representação da indiferença à pobreza como um crime social.