De que inteligência estamos falando quando a chamamos de artificial? Eu lembro do tempo do colégio quando ser chamada de inteligente era um elogio para quem tirava nota alta na prova ou passava por média, sem recuperação. Foi o meu caso no ensino fundamental: eu pertencia às CDFs da classe. A líder do grupo era a minha amiga Juliana Fürstenau, ainda hoje uma CDF de carteirinha: não sabe todas as respostas, mas não tem medo de perguntar. A sigla informal podia ser referência para “Cabeça De Ferro” ou “Crânio de Ferro”. Já para o meu sócio, Sebastião Ribeiro, o significado era um pouco menos nobre. CDF, que ele lembre, significa C de cú de ferro, mas de fato nem eu, nem o chatGPT sabemos ao certo a origem do termo.
Chamar uma pessoa que estudava e ia bem nos testes de conhecimento de alguém de ferro já era, no século passado, uma remissão às máquinas. “Mas é uma máquina esta menina!”. Quando ouvia esta expressão, eu lembro bem da minha alegria porque era um elogio. Nos sentíamos prestigiadas. Desde cedo aprendemos que ter conhecimento acima da média não é para humanos. Talvez por isto na história das sociedades buscamos tecnologias inovadoras como extensões dos nossos sentidos. Os óculos para enxergar melhor. Os fones de ouvido e aparelhos auditivos para amplificar a audição. A roda para acelerar a locomoção. E assim por diante. A consciência da nossa condição humana impulsionou as grandes descobertas da humanidade.
O CDF do colégio pode até se tornar aquele cientista capaz de enxergar o mundo por um ângulo inédito, desenvolver uma capacidade resolutiva acima da média, propor uma perspectiva não alcançada pelos pares. O fato é que a insatisfação do humano com o próprio humano nos trouxe até aqui. O intelecto de ferro das mentes mais privilegiadas foi percebido como insuficiente, por isto precisávamos nos potencializar. Eu mesma percebi minha impotência desde cedo quando “peguei” recuperação em uma disciplina no Ensino Médio. Humana, demasiadamente humana.
No começou, os robôs eram fruto da imaginação, pura ficção científica. As máquinas capazes não apenas de fazer atividades antes realizadas pelos humanos, mas também de interagir, conversar, resolver problemas. Ainda não vivemos o futuro imaginado na série de televisão Jetsons, por exemplo, com carros voadores, robôs, cidades suspensas e outras maravilhas tecnológicas, mas estamos nos aproximando. Quem sabe em 2062. Antes disso teremos de superar as dores crônicas de hoje: o nosso relacionamento conturbado com as ferramentas de inteligência artificial.
Há muito alarmismo, negação e medo em relação às novas ferramentas digitais e pouca disposição para testar, aprender e usar elas a nosso favor. Os chats como o GTP, por exemplo, são isso: ferramentas digitais de geração de texto, gráficos e outros elementos. Só funcionam à medida em que nós humanos o alimentamos. Os riscos estão postos, não podemos ignorá-los: automação do trabalho, circulação desenfreada de desinformação, descontrole de carros sem motoristas e tantos outros. As IAs são arriscadas, assim como viver é correr riscos.
A Juliana, a líder das CDFs do colégio, por exemplo, se desafia a pensar criticamente a tecnologia ao meu lado todas as semanas no nosso videocast Vida Digital, mesmo sendo ela administradora e não comunicadora de formação. Há riscos envolvidos em uma transmissão ao vivo. Ela não só sabe do risco, como já passou por situações inesperadas como uma crise de tosse, uma caminhada em frente à câmera, um entrevistado monossilábico (que rende pouco) e tantas outras. O que fez a CDF? Aprendeu a como lidar com as situações, mas não deixou de sentar-se ao meu lado na bancada todas as segundas-feiras, às 19h, e apresentar o Vida Digital. Pode haver talento, mas há principalmente dedicação, persistência e disponibilidade a aprender sobre o novo.
E se o nosso desafio daqui para frente for para correr os bons riscos? O risco de encontrar soluções para as fakes news, para o burnout, para a violência nas escolas, para cânceres, vírus, pandemias e tantas outros problemas sociais com ajuda das máquinas inteligentes? Quanto mais humanamente CDFs nós formos em relação à compreensão deste mundo novo, tanto mais riscos de a inteligência artificial trabalhar menos contra nós e mais a nosso favor. É isso ou estaremos nós CDFs com os dias contados para sermos substituídos e fadados a viver apenas na memória afetiva do século passado.