Toda pessoa preta já teve que dizer em algum momento que não é parente do Zé, da Maria, do João. Que inclusive nem os conhece. E que não. Não são da mesma família. No geral todo mundo pensa que preto é tudo igual para o bem ou para o mal.
Cada pessoa seja preta ou com qualquer outro marcador de cor tem sua história, lutas, dores, amores e, principalmente, singularidades. O tecido cultural tece relações e percepções que até podem em algum momento direcionar, mas nunca serão os únicos norteadores.
Esta semana, a convite da minha agência, publiquei um vídeo mostrando minha rotina de trabalho home office. Claro que desenhei uma narrativa: uma narrativa que dá indícios de quem sou, de como me porto, o que valorizo e, no final, que demonstra uma parte da minha personalidade. Porque no resumo da ópera, imagem é isto: uma parte que mostramos ao mundo do que somos e acreditamos.
E um amigo querido disse: “Tu estás chiquérrima… de dar raiva em racista que vai se perguntar: quem ela pensa que é?” Esta frase que chegou até mim me fez perceber que algo que eu já sabia, que é a visão no Brasil sobre as pessoas negras. Você pode até se destacar, mas demonstrar poder já é demais. E isto ficou martelando até eu pensar em um insight: potência e prosperidade pretas incomodam.
Eu sempre senti o incômodo… Ou melhor, a minha vida sempre gerou incômodos e não só de pessoas racistas, mas inclusive de familiares pretos que consideram que a vida deve ser ligada a escassez, invisibilidade e limitada ao contorno do que é conhecido e confortável. E eu sempre incomodei.
Incomodei quando com menos de 5 anos me recusava a comer de colher e queria garfos;
Incomodei quando eu dizia que ia estudar e conhecer o mundo;
Incomodei quando disse que não ia me casar e ficar cuidando de filho;
Incomodei quando pedia livros e não vestidos;
Incomodei quando resolvi estudar francês ao invés do inglês;
Incomodei quando passei no vestibular da UFRGS sendo uma menina preta de escola pública sem cursinho da moda;
Incomodei quando meus colegas na faculdade viam minha facilidade em escrever me expondo e contrapondo;
Incomodei quando fiz um monte de coisa pela 1ª vez: ajudei minha mãe, paguei dívidas, ganhei prêmios, fui tutora financeira e afetiva de um tio doente mental por 12 anos, sai do cargo de diretora com uma caixa de livros na mão e fui empreender, apostei em influência há mais de 20 anos atrás, abracei causas, banquei opiniões, perdi dinheiro e clientes e me levantei.
No final das contas, eu sempre incomodei por andar comigo mesma e por acreditar que a gente não nasce para servir a vida dos outros, que a vida é para ser vivida cheia de novas descobertas, que errar faz parte do processo, e que estamos buscando apenas uma coisa: viver uma vida interessante, bem longe do ideal de felicidade idealizada.
Quando revelo quem sou ao mundo acabo incomodando, pois este mundo se incomoda com as diferenças, com quem não anda agarrado em crenças. E se você ainda abraçar o porquê não incomoda mais ainda?
Por que todos ficam confortáveis com pessoas pretas sofrendo?
Por que não existe problema em saber que mulheres pretas são preteridas no mercado do amor?
Por que a pobreza preta não incomoda?
Por que você acha que quando alguém preto enriquece ou se destaca perdeu a “humildade”?
Por que você acha estranho pessoas pretas vivendo bem? Tendo casa? Dinheiro? Trabalho?
Porque isto fere o estereotipo que todo preto é igual. E o igual no Brasil significa pobre, marginal e ligado ao crime. E isto é o tal racismo estrutural que está incrustrado no DNA do brasileiro.
Eu vibrei de ver cada amiga preta que comprou sua passagem e foi no show da Beyonce em Londres, Barcelona e Miami. Sim… eu vi pessoas pretas fazendo isto nas minhas redes e achei genial.
Me lembro que passei uma noite chorando ao assistir a série, no Netflix, da Madame C.J. Walker. Porque ali me vi buscando algo mais e ser atravessada não só pelo racismo como pelo sexismo.
Eu vibro com cada movimento de ascensão das pessoas pretas que vejo, pois acredito que nascemos para expressar nossa potência e prosperidade.
No Brasil, ainda estamos longe de falarmos sobre afroriqueza, mas ela um dia ainda será um tema assim como nos EUA. Pessoas pretas tendo poder, capital e podendo investir em elevar ainda mais a nossa comunidade. Esta afroriqueza passa por acesso ao capital, mas precisa de mais acesso a educação e a multiculturalidade para que a gente possa ter parâmetros para irmos além de nós mesmos.
Mais um incômodo: sinalizar que a afroriqueza não são bens materiais, mas a nossa potência no mundo.
Bora continuar incomodando.
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