Não podemos naturalizar os desastres. E há muito a ser aprendido por tudo que passamos no Rio Grande do Sul. Por isso, trago mais um resumo do que rolou no último dia da série de lives “Diálogos entre jornalistas e especialistas acerca do desastre”. Os encontros, realizados dos dias 6 a 8 de agosto, podem ser acessados no YouTube da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). O texto de hoje é sobre a terceira live promovida pelo Grupo de Trabalho de Comunicação da Rede de Emergência Climática e Ambiental (Reca), colegas do Núcleo de Ecojornalistas do RS e integrantes do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental da UFRGS.
Você já se perguntou o que geralmente acontece depois de um tempo de desastre? Como ainda estamos processando tudo pelo que passamos no Estado, o tema desse encontro merece muito ser assimilado: “Voltamos à normalidade. Quando o desastre acaba?”
A mediadora do encontro e uma das organizadoras do evento, Eloisa Loose, explica o que moveu a realização da iniciativa.
O formato e a proposta foram pensados para promover trocas entre os profissionais que realizam a cobertura de desastres e oportunizar o conhecimento de diferentes perfis de técnicos e pesquisadores que se debruçam sobre o tema. “A comunicação de riscos é uma área interdisciplinar, o que torna o diálogo entre os diferentes saberes ainda mais necessário,” explicou a Eloisa.
Sobre a última live, a abordagem chamou a atenção das inúmeras questões que estão por todos os lados depois de algumas semanas de um desastre ou quando ele é normalizado e deixa de ser notícia. “Para além de buscar novos caminhos para reportar os desastres a partir dos olhares dos especialistas, buscamos destacar o papel relevante que o Jornalismo tem ao rememorar o desastre e não deixar que os afetados sejam esquecidos”, apontou a professora e pesquisadora da UFRGS.
O pesquisador na área de sociologia dos desastres, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (MCTI), Victor Marchezini, comentou algumas situações vividas em outros desastres no Brasil. É comum, na sequência, a saúde da população ser abalada de diversas maneiras. Assim como a falta de assistência, a descriminação habitacional e casos em que proprietários não querem alugar seus imóveis para desalojados. Há também casos que ele chamou de “indústria do desastre”, quando empresas são contratadas sem processo licitatório, contratam gente de fora, deixando de lado a mão de obra local (seria mera coincidência o que estamos passando em Porto Alegre?)
Isso quer dizer que temos muito a trocar, aprender com a experiência de quem já passou por contextos similares. Marchezini lembra que em São Luiz de Paraitinga, pequeno município de São Paulo, em 2010, o governo viabilizou microcrédito aproveitando a expertise de movimentos de economia solidária, utilizando moedas sociais para valorização do comércio. Ele até citou que nós temos o Orçamento Participativo! (uma iniciativa que ganhou o mundo, mas que está quase morta, por ter sido torturada, apagada, com toques de crueldade por aqui). Para ele, é importante fundar uma associação de moradores afetados. Alguém sabe de alguma que tenha sido criada? (me conta!)
Ele citou o e-book Abandonados no Desastre para quem quer entender melhor o que estamos passando. Sim, há literatura sobre o assunto! Depois do calor do momento de atendimento às desgraças, a solidariedade se esvai, deixa de ser pauta, mas os danos, as perdas, as sequelas continuam sendo vivenciadas pelas pessoas.
O jornalista Arnaldo Zimmermann, que cobriu desastres significativos em Santa Catarina, principalmente para programas de rádio, revelou que a própria população está ansiosa “pela volta ao normal”. Zimmermann entende que o rádio é um bom meio para manter a pauta viva, pois há muitas informações de serviço para serem esmiuçadas. A participação dos ouvintes na cobertura de desastres gera bastante audiência.
Ele lembra que na enchente de 2008, no Vale do Itajaí, um ano depois, ainda tinha gente morando nos abrigos. Hoje, em municípios do Estado vizinho, se cultivou o hábito de acompanhar a subida e descida do rio. “A questão é manter a memória,” opina. Com relação às enchentes, ele classifica os públicos em três tipos: o atingido diretamente, o envolvido; o interessado, que vê de perto a enchente, está ilhado, e aquele que só acompanha pela mídia e é geralmente o mais ansioso pela normalidade, por não ter sentido na pele os impactos da destruição, mas que influencia a opinião pública.
“O excesso de singularidade beira ao sensacionalismo. Não dá só para ficar no particular”, afirma. Ele parou de pesquisar sobre desastres em 2012 “por desânimo”.
O professor de Botânica da UFRGS, Paulo Brack , pesquisador na área de políticas públicas em biodiversidade e meio ambiente, denunciou o quanto os desastres do ano passado e deste ano são agravados pela ausência de uma gestão ambiental mais efetiva por parte do governo do Estado. Ele citou as manobras do governo para desmontar a legislação ambiental e o quanto a mídia convencional não trata de pautas nas quais os interesses de grandes empresas e anunciantes podem ser maculados.
Brack citou o caso do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema). Na sua opinião, os setores econômicos ali representados são negacionistas. Defendem seus interesses, sem considerar os impactos aos ecossistemas e às populações afetadas pelos empreendimentos. Ele comparou o contexto do RS à narrativa do Titanic, cujo comandante não acredita que precisa desviar da rota. O professor sugere a criação de uma Frente de Resistência às Mudanças Climáticas. “Não podemos naturalizar os desastres,” sentencia.
Já a professora de Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto, Karina Gomes Barbosa, acompanha o que vem acontecendo em Minas Gerais com relação aos desastres provocados pela mineração. Ela relembrou o quão dramático foi o impacto do rompimento da Barragem do Fundão, no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, em 2015. E até hoje, há muitos problemas que não foram resolvidos. Ninguém foi preso. “Como reelaborar trauma?”, indagou.
Segundo Karina, as violações continuam, de um acontecimento que se desdobra ao longo do tempo. “Percebemos porque estamos no território. Quando tem a efeméride, a data dos desastres, a cidade começa a encher,” observou. Ela acredita que esse tipo de pauta precisa ter uma cobertura contínua, com a presença da imprensa em reuniões, em atividades no território atingido. Ela confessa que sua atuação exige um “trabalho de formiguinha”. Comemorou que conseguiu, pelo menos, que a Folha de S. Paulo e a Piauí fossem até o local para fazer reportagens. E sintetiza: o que estamos vivendo com relação aos acidentes com barragens de mineração é um tipo de falência do poder público, com muitas omissões e falhas.
Muitos pontos tratados pelos participantes da live acabam levando a questionamentos sobre a ética e a moral dos tomadores de decisão. Realmente, nesse momento da história, os cenários agravados pela crise climática remexem um punhado de certezas e práticas que precisam ser debatidas. E isso precisa da conscientização de todos os segmentos da sociedade. Pois, pelo andar da carruagem, outros episódios de eventos climáticos extremos virão. Ou você imaginava que o interior de São Paulo iria ter tantos focos de incêndio ao mesmo tempo?
Marchezini propôs que as universidades construam bases de dados sobre esse assunto. Ele disse que no Cenaden “sumiram” informações do sistema. Sobre Mariana, a Fundação Renova foi quem ficou com os dados e não o Estado. Ele diz que não dá para se limitar aos dados da Defesa Civil. É preciso conferir com o que tem no Sistema Único de Saúde (SUS), nos trabalhos científicos produzidos nas universidades. E sugere que se acompanhe as publicações e novidades que surgem, pois é necessário conectar, fazer pontes sobre as áreas de conhecimento.
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Prevenção a desastres I
Prevenção a desastres II
Foto da Capa: Agência Brasil
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