Para Ênio Schotkis
Procura-se um ecografista que tenha certa índole ficcional.
Que, mesmo diante da realidade, saiba driblá-la como um craque que não nega a dificuldade da partida. Mas a transforma no interior do campo, com ética, habilidade e verossimilhança.
Não que seja um mentiroso, a ponto de criar problemas insolúveis e ilusões perigosas, mas que guarde uma relação suave entre as imagens e as palavras, a ponto de trazer a sombra de alguma solução. E, justo aí, que não se prevaleça do poder de olhar imagens cada vez mais nítidas, e guarde outro poder: o de maquiar com responsabilidade o que está vendo, mesmo que já fosse inconteste, antes do seu olhar.
Que possa ser tolerante com cistos nos rins, nódulos na tireoide, pólipos na vesícula, calcificações na próstata, hemangiomas no fígado e, especialmente, com as placas de aterosclerose, espalhadas por toda parte, entre o abdômen e o pescoço.
Procura-se um ecografista que conheça a rudeza de um laudo frio, a cada vocábulo que empunha, e possa lê-lo como um poema aberto a muitas outras possibilidades. E, sobretudo, a possibilidade de alguma saída.
Procura-se um ecografista que, mesmo na sala escura, seja um especialista em luz.
Sempre se procurou, mas, com o tempo e o desgaste da carne e da alma, procura-se ainda mais esse ecografista iluminado e iluminador.
Que possa filtrar o que é denotativo e dele sempre faça algo com uma franja conotativa de ambiguidade, onde se possa descansar, no melhor dos sentidos, que é o de pensar no próximo trabalho e sentir o próximo descanso.
Procura-se um ecografista que, mesmo não se julgando superior ao tempo, possa interpretá-lo como algo inevitável, mas não definitivo, imagem em movimento que precisa ser detida pela interpretação melódica, de olho em alguma imagem favorável para a prosa compartida.
Procura-se um ecografista empático com a frieza da sala onde trabalha, com a fragilidade da seminudez que espia e, em especial, com a hesitação diante do gel melequento que se espalha, solidamente, mais do que notícia ruim.
Procura-se um ecografista que olhe ternamente nos olhos, que toque amistosamente na pele. E converse muito, durante o pouco tempo de uma ecografia, a ponto de que todas as imagens e todos os nomes desagradáveis e suas tendências de ocuparem o tempo todo, possam estar contidos no espaço por um fio ou mesmo dois de esperança.
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