Escrevo no dia 4 de maio de 2024. Daqui do Cerrado, onde eu acho que a previsão do tempo é a mais previsível do país. Seca de meados de abril ao fim de setembro, começo de outubro, com um intervalinho na segunda quinzena de agosto para a chuva do caju, chamada assim porque favorece o desenvolvimento das frutas. Chuva, bastante chuva, no resto do ano.
Hoje mesmo, o clima confirma a frase famosa de Lucio Costa: o céu é o mar de Brasília. Sopra um ventinho agradável. A temperatura vai variar entre os 16 e os 29 graus. E a umidade do ar – é aqui que precisamos ter cuidado – já está em 37% e exigindo a proteção do chapéu e dos hidrantes. E o azul do céu só vê no mais bonito dos oceanos.
Bem, é sob essas condições meteorológicas que eu acompanho a tragédia climática no Rio Grande do Sul. Portais de notícias, TV, rádio (acreditem: eu ouço rádio num rádio “portátil”, um Sony 12 ondas comprado num freeshopp, há 32 anos, quando passei um período em Angola)… mas é na troca de mensagens pelo WhatsApp que sinto mais o pesar que todos lá estão vivendo. Amigos de todo o Brasil manifestam o susto e lamentam o que acontece.
Um deles, do Rio Grande do Norte, me ligou ontem lembrando um passeio que fizemos juntos pela Rua da Praia e uma visita que ele fez, sem a minha parceria, pelo Cais Mauá.
Vixe! O cais quase sumiu! E a Rua da Praia? Alagada!!
Vivi muito tempo no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, e a primeira lembrança que meio veio à cabeça quando começaram as comparações desta enchente com a de 1941 é da Avenida Praia de Belas. Lá, na parede da sede do Gaúcho, o Grêmio Náutico Gaúcho, está (será que ainda se vê?) marcado o ponto onde chegaram as águas do Guaíba naqueles dias de abril/maio, 83 anos atrás. E a gente tinha que olhar para cima para ver a marca…
O clube foi fundado em 1929 e apenas os poucos metros de largura da Avenida Praia de Belas separavam a sede das águas do Guaíba. Na segunda metade da década de 1950 resolveram provocar o rio. Ele foi empurrado para trás com a obra do primeiro aterro. Areia dele mesmo era dragada lá do fundo e jogada na avenida. E a Praia de Belas virou só um nome numa placa. Já nenhuma bela se banhava naquelas águas, nem tomava sol naquelas areias. E chegou mais asfalto. Muito asfalto.
Eu estava aqui pensando: em 1941 as águas subiram 4,73cm e provocaram aquela marca na parede do clube. Mas a margem do rio ficava bem ali, só uns poucos metros distantes. Será que, passados 83 anos, com o rio empurrado lá pra longe por asfalto e areia, as águas vão voltar até lá?
Aí, pedi o testemunho dos amigos do Menino Deus e de parentes. Os vídeos que recebo, os textos que leio são o testemunho de que o Guaíba quer de volta o que era dele.
Empurrado pelas águas do Jacuí, do Taquari, do Caí, do Sinos e do Gravataí, ele subiu mais de 5 metros e já ocupa a Rua José de Alencar e está pertinho – se já não chegou – da Getúlio (é assim que os íntimos se referem à Avenida Getúlio Vargas).
Um amigo dá o diagnóstico certeiro: …acho que isso vai ficar pior… a situação da cidade é caótica… o que me apavorou mais foi que, da avenida Cristóvão Colombo pra baixo, todas as ruas estão interditadas… a água tá chegando pertinho… a sensação eu tive, assim, é que parece que Porto Alegre tá em guerra… impressionante.. agora que eu tive essa dimensão!
Também num grupo de troca de mensagens, recebi imagens tristes do Centro Histórico alagado legendado com versos do hino do Rio Grande.
Me desculpe, o autor da mensagem, mas há façanhas humanas que não podem servir de modelo a ninguém. Assorear os rios com aterros, desmatar e ocupar desordenadamente as margens, fazê-los depósitos de lixo, despejar neles todo tipo de esgoto, por exemplo, são façanhas para serem corrigidas antes de servir de exemplo.
Vendo esse vídeo, lembrei de outro, de 2020, que mostrava imagens da cheia que deixou 12 mil pessoas fora de casa no Espírito Santo. Com título “Lamento de um rio”, o narrador, como se fosse o rio falando, pedia desculpas pelos estragos e problemas que tinha provocado e repetia que só queria passar.
Alguém até usou o texto com imagens de Porto Alegre e o vídeo circula, de novo, nas redes sociais. É isso. O Guaíba, levando de carona as águas do Jacuí, do Taquari, do Caí, do Sinos e do Gravataí só quer passar. Mas nós nos atravessamos no caminho dele…
O Rio Grande vai se recuperar, ninguém duvida. Mas como diz meu amigo, a situação vai piorar. Depois do salvamento de vidas, vem a reconstrução. E aí, quem vai enfrentar uma guerra ímpia e injusta é quem tem menos culpa no desastre e foi empurrado para as áreas de risco.
Nas tragédias, quem paga mais é quem tem menos: menos emprego, menos salário, a casa perdida, o negócio fechado… e a dependência, de sempre, da ajuda emergencial do governo… e da solidariedade dos iguais. Até lembrei de uma frase de Eduardo Marinho, filho da classe média do Espírito Santo, que decidiu, aos 19 anos de idade, viver na rua, como mendigo: os que têm pouco não dão as sobras, dividem o que têm…
Ah! Este ano tem eleição. Quem sabe a gente inunda as redes sociais dos partidos e dos políticos com imagens do desastre? Com depoimentos de quem perdeu tudo, até a família? Com os nomes das crianças que buscam parentes desaparecidos? Com relatos que mostram a solidariedade entre os menos favorecidos? Assim, talvez, eles apresentem algum projeto de prevenção dessas tragédias, que, de tão repetidas, já não se pode chamar de acidentes.
Foto da Capa: Agência Brasil
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