Não é novidade a estreita relação entre psicanálise e literatura, inclusive inaugurada e exaltada pelo próprio pai da primeira, que sempre fez questão de enfatizar que artistas e poetas alcançam um lugar de entendimento e alcance de percepção do mundo que psicanalistas tardam (quando conseguem) a alcançar.
A psicanálise tem se voltado com mais força e até diria com mais humildade à força da literatura e da poesia nesses tempos brutos. Parece que, na contramão da criação de abordagens psicoterápicas mais “rápidas e eficazes”, além do uso desenfreado de medicações que buscam alívio imediato, a busca por estudos e espaços onde o emocional encontra apoio no poético está cada vez mais em evidência.
Os clubes de leitura que se proliferam a olhos vistos me parecem um exemplo não tão óbvio dessa busca. Arrisco dizer que, para além da cultura e do aprimoramento intelectual, o que as pessoas têm buscado nesses espaços é o coletivo, é a confissão compartilhada de que ninguém consegue mais encontrar espaço para ler sozinho. Os clubes de leitura se tornaram personal trainers literários e emocionais, pois o compromisso do encontro mensal para a partilha da leitura realizada “obriga” o sujeito a de fato concluir a leitura com um prazo estipulado. Estamos precisando de prazo até para o que anteriormente era visto como lazer. Desde que a pessoa não tome essa como mais uma atribuição atual de ser “um leitor”, me parece válido.
A busca pela leitura e também pela escrita como medicina não é de agora, mas a literatura contemporânea tem conseguido trazer à tona temas importantes que estão para além das salas de análise. Discussões sobre envelhecimento, amizade feminina, abuso e violência. Não só de streamings estamos vivendo, ainda bem. Certamente, a atividade da leitura requer um envolvimento e uma entrega de tempo que opera numa lógica diferente de uma série de TV, mas ambos os espaços podem promover desacomodação, reflexão e polêmica, como foi o caso mais recente da série “Adolescência” do Netflix.
Ler um livro profundo e poético não torna ninguém poeta e muito menos analisado nem analista, isso é fato. Mas a abertura a um universo reflexivo e metafórico certamente abre janelas internas que uma academia ou pista de corrida jamais abrirão. Mas é preciso estar poroso a isso. Minhas andanças profissionais têm trilhado esse caminho e sempre preocupo-me em enfatizar que psicanálise não é poesia e nem vice-versa. Ambos são fazeres sérios (mas que podem ser engraçadíssimos, que fique claro) e específicos em sua natureza e método. Porém, eles são grandes amigos em mim, por vezes debocham um do outro, tentam experimentar um ser o outro, mas sabem que sempre falharão. O lugar pontual e nevrálgico que um bom poema pode tocar não é o mesmo que uma boa interpretação em contexto analítico o fará. Eu preciso de ambas, assim como tento provocar ambas com quem trabalho.
Impossível um bom leitor não se tornar um melhor analista, mas o contrário não é necessariamente verdadeiro. O que pode ocorrer é que um bom leitor vai enxergar-se a si mesmo sob outras vertentes e, provocado, levará até sua própria análise temas suscitados pela leitura de um bom livro. Um bom analista se faz com análise pessoal contínua e aprofundada e muito estudo. Ler ajuda, alivia, expande. Se um leitor sair de uma leitura mais analista de si, já me parece um bom negócio.
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