*Publicado em 19/8/2024
Vamos desenvolver mais um pouco o assunto da semana passada, a “Observação da natureza como remédio“, abordando agora o alcance do fator paisagens na nossa formação e saúde. Na história da antropogeografia, há um radicalismo acerca dos aspectos da cultura humana. Ora centra nos estímulos e inibições vindas do mundo exterior e físico, ora os menospreza em favor de uma pretensa cultura inteiramente espiritualizada, segundo o pesquisador Pe. Balduíno Rambo. Mas ele pondera, em seu excelente livro, A fisionomia do Rio Grande do Sul, que “na realidade, vale para a cultura o mesmo axioma que governa os conhecimentos de ordem puramente intelectual: nada está na mente que não esteve primeiro nos sentidos. Grande parte da matéria-prima dos nossos pensamentos e conceitos nos é fornecida pelo mundo físico externo; seus símbolos e suas analogias, suas luzes e suas trevas, suas auroras e seus ocasos acompanham o homem desde os primeiros albores da inteligência, até o derradeiro crepúsculo da vida. Toda a nossa vida intelectual, volitiva e emocional, está estruturada em imagens, lembranças, situações concretas radicadas nas paisagens, que nos viu nascer, crescer e trabalhar, e um dia nos receberá para o longo descanso.”
Vivo no Sul privilegiado, que abriga paisagens distintas com enorme riqueza de elementos naturais: Serra, Planalto, Campanha, Depressão Central e Litoral. É poesia em forma de montanhas, campos, coxilhas, matas, rios, cascatas, mar, vento, etc. Na Serra encontramos a grandiosidade do movimento, sem que haja movimento físico, mas a impressão deste causada pela cadeia de montanhas que “sobe da planície, interrompe-se bruscamente em profundas quebradas e galga, em carreira vertiginosa, os píncaros que tocam nas nuvens do firmamento. Este momento simbólico, próprio das cadeias de montanhas, é a última razão pela qual o homem, desde tempos imemoriais, ama as montanhas mais do que qualquer outro traço fisionômico da terra”, descreve Rambo. A Serra Gaúcha é esplendorosa e não é de admirar que Gramado fosse muito procurada, no início do século passado, por sua fama de lugar onde as pessoas podiam se recuperar de doenças, como a tuberculose e a coqueluche, que afetava especialmente as crianças. O ar puro, o descanso e as caminhadas pelas exuberantes paisagens eram apontadas como principais fatores de cura. Hoje, temos outra ordem de problemas, sendo a saúde mental um dos maiores desafios nos centros urbanos com sua degradação e inevitáveis cargas de estresse.
Em Londres, foi feito um estudo, em 31 escolas, que se acredita ser um dos maiores do gênero, com 3.568 crianças e adolescentes entre nove e 15 anos, idades determinantes do desenvolvimento do pensamento, raciocínio e compreensão do mundo. Publicado na Nature Sustainability, mostra que a proximidade com áreas verdes melhora o desenvolvimento cognitivo e reduz o risco de problemas emocionais e comportamentais. Crianças e adolescentes que vivem perto de florestas têm maior desenvolvimento cognitivo e menor risco de problemas mentais. O autor principal, o estudante de doutorado Mikaël Maes (UCL Geography, UCL Biosciences e Imperial College London School of Public Health) disse: “Essas descobertas contribuem para a nossa compreensão dos tipos de ambientes naturais como um importante fator de proteção para o desenvolvimento cognitivo e a saúde mental de um adolescente. A imersão na floresta, por exemplo (estar imerso nas imagens, sons e cheiros de uma floresta), é uma terapia de relaxamento que tem sido associada a benefícios fisiológicos, apoiando a função imunológica humana, reduzindo a variabilidade da frequência cardíaca e do cortisol salivar, além de vários aspectos psicológicos benéficos. No entanto, as razões pelas quais experimentamos esses benefícios psicológicos da floresta permanecem desconhecidas.”
O neurocientista canadense Collin Ellard afirma que é uma psicologia dos lugares, o que afeta poderosamente nossos pensamentos, emoções e respostas físicas. Ele chegou à última fronteira nesta abordagem, o hospital, ao demonstrar que pessoas internadas em leitos com vista para árvores se recuperam mais rápido do que as que só veem pela janela edifícios, telhados e chaminés¹. Patrik Grahn, professor na Universidade Sueca de Ciências Agrícolas, também se dedica a comprovar a relação da nossa saúde com o meio ambiente, ao nível consciente e inconsciente, que se dá através da influência do verde e do concreto, da luz natural e artificial, dos sons, dos cheiros e até de imagens. Em um estudo com dois grupos de pacientes em um hospital, os de pós-operatório em UTI sem janelas tinham uma incidência duas vezes maior de confusão e alucinação do que os instalados em enfermarias com janelas, assim como menos compreensão de quanto tempo ficaram no hospital. Grahn atribui aos milhões de anos em que o homem se desenvolveu nos ambientes naturais a raiz de nosso bem-estar em contato com a natureza².
Os resultados do estudo publicado na Nature Sustainability sugerem também que o planejamento urbano que inclui áreas verdes pode ser crucial para o desenvolvimento saudável das próximas gerações. Mesmo os ambientes naturais mais distantes da residência e da escola de um adolescente desempenham papel importante. Os parques nas metrópoles, portanto, se revelam ainda mais necessários neste nosso tempo caótico, pois são uma espécie de oásis na aridez urbana com sua poluição do ar, de sons e de visual, excesso de luz artificial, trânsito, etc. Espaços como o imenso Central Park, de Nova Iorque, com suas alamedas e pontes, ou o Jardim Botânico, de Porto Alegre, com seus caminhos através da exuberante vegetação, ainda nos permitem cognições mais aguçadas, com uma experiência natural além da nossa percepção rotineira. O escritor Jonathan Franzen, um apaixonado observador de aves, teve seu insight no Central Park durante uma migração da primavera, que descreveu em seu livro A zona do desconforto: uma história pessoal. “As únicas aves que eu já reparara nas minhas centenas de caminhadas pelo parque eram pombos e patos e, de uma certa distância, por trás de uma bateria de telescópios, os gaviões-de-rabo-vermelho que tinham feito seus ninhos e virado celebridades nova-iorquinas submetidas a uma permanente exposição. Era estranho ver um tordo-ruivo vindo de fora, nada famoso, saltitando em plena luz do dia, a menos de um metro e meio da movimentada alameda, num dia em que metade de Manhattan tinha saído de casa para tomar sol no parque. Tive a sensação de que passara a vida inteira equivocado a respeito de alguma coisa muito importante.” Pois é… Privados do contato com a natureza, sofremos uma perda de percepção sutil da realidade e isso nos adoece.
¹Places of the heart: The Psychogeography of Everyday Life, de Colin Ellard – Editora Bellevue Literary Press, NY/EUA, 2015.
²Landscape planning and stress. Patrik Grahn and Ulrika A Stigsdotter Department of Landscape Planning, Health & Recreation, Swedish University of Agricultural Sciences, Alnarp, Sweden.
Interview with Patrik Grahn, Prof, Swedish University of Agricultural, Sciences, Alnarp, Sweden.
Foto da Capa: Cânion Monte Negro - São José dos Ausentes/RS / Acervo da Autora
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