O perfil médio de saúde mental dos brasileiros e brasileiras foi impactado pela pandemia da COVID-19 (2022-2023), em processo que se repetiu em outros países pelo mundo afora. Isso gerou aumento de demanda de cuidados para aqueles que se sentiram incluídos nesse rol de pessoas, e esses cuidados, muitas vezes, vieram no formato de psicoterapias, com ou sem acesso a outros serviços de atendimento, como o serviço ambulatorial médico-psiquiátrico. Concomitantemente, se adensou a discussão acerca do que caracterizaria a psicoterapia, e qual ou quais ofícios profissionais estariam habilitados a oferecê-la. Para os que não me conhecem mais de perto, devo informar que faço parte de um dos ofícios que se tem apresentado como habilitado a essa prestação de serviços – sou psicólogo. Faço esse esclarecimento preliminar ciente de que isso poderá vir a ser considerado como aspecto que agregue crédito ou descrédito às considerações que se seguirão.
A forma, no plural, do título que abre o presente texto alude, de saída, ao fato de que há mais de um modelo para a formação e configuração do exercício profissional da escuta psicoterapêutica. Tal diversidade tem incidência direta sobre conceitos-chave desse campo de exercício profissional, como aqueles relacionados aos agravos da saúde mental em geral, seus sinais (ou sintomas), e os caminhos a serem propostos para a abordagem desse quadro de eventual adoecimento. Em termos de ofícios profissionais, além das psicólogas e psicólogos já mencionados, é preciso mencionar a assistência disponibilizada pelos médicos psiquiatras, e essa lista não se esgota nesses dois ofícios. Mesmo se tratando de questão em franco debate, conforme será comentado na sequência, há menção a psicopedagogas e psicopedagogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e acompanhantes terapêuticos, e a lista prossegue…
Tramita no Senado Federal Brasileiro requerimento da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa n° 49, de 2025, de autoria da Senadora Mara Gabrilli (PSD-SP), no sentido de se realizar Audiência Pública destinada a promover debate que instrua proposta segundo a qual a prática da psicoterapia seria de caráter restrito a psicólogos e médicos psiquiatras. A questão de fundo, aqui, seria a restrição da oferta de psicoterapia a estes dois ofícios profissionais por se avaliar que os mesmos seriam os únicos a, de fato, oferecer formação adequada para tal demanda social.
Deixemos de lado, por hora, a questão dos dois ofícios profissionais mencionados acima, supostamente aqueles que ofereceriam a tal “formação adequada” para o exercício profissional da psicoterapia, e pensemos justamente sobre o núcleo descritor fundamental da psicoterapia. Em termos de representação social, qualquer “terapia” (incluída aqui a psicoterapia) tem como aspecto central a sua efetividade. O poder terapêutico de um conjunto de procedimentos, como faz supor a própria raiz grega therapeia, diz respeito a tratamento e cura. Nesse sentido, o que se espera de uma terapia, e o que a define, é sua eficácia para tratar e curar algum tipo de desconforto, sofrimento, mal-estar, doença. A influência da perspectiva médica é clara e evidente aqui, e haverá correntes da psicologia que irão se insurgir contra essa herança e tentar se diferenciar dela. Mas isso nos levaria a um outro terreno de debate, fora do foco que nos motivou a trazer esse assunto intra-corporis do ofício profissional dos psicoterapeutas para um debate fora dessa caixinha.
O prezado leitor e a prezada leitora precisam ser advertidos, neste ponto, que a finalidade da terapia almejada por parte de quem a busca (o “cliente”, ou “paciente”, ou “pessoa em atendimento”, ou mais algumas outras denominações…) pode não coincidir com a finalidade estabelecida por parte de quem a oferece. Esta pessoa que busca “terapia” para sua “psiquê” não é necessariamente especialista em escolas de abordagem em psicoterapia, tudo o que tal pessoa sabe é que determinada(o) Fulano(a) é psicoterapeuta, e ela precisa de um(a), sem mais filigranas – pelo menos na partida… Depois, eventualmente, virão algumas frustrações e queixas…
Não seria responsável, de minha parte, deixar no ar a ideia de que existiria um(a) terapeuta “sob medida” para cada uma e cada um. Não se vai até esse extremo. Mas, por outro lado, não posso ignorar que a diversidade de psicoterapias, em termos de perspectivas definidoras de uns tantos conceitos tais como “saúde mental”, “normalidade e patologia”, “abordagem terapêutica”, resulta numa situação potencialmente propiciadora de encontros e de desencontros. E aqui retornamos a um ponto dessa reflexão com rebatimento sobre o presente momento de disputa entre guildas profissionais de “tratadores da alma”: qual ofício deveria ter reconhecimento do Estado, a “licença” para essa prestação de serviços, e, por decorrência, quais outros estariam excluídos?
Os mais argutos já perceberam que estamos aqui numa disputa de poder. A reserva de espaço jurídico para exercício profissional costuma, historicamente, decorrer de verdadeiras batalhas, com recurso a meios violentos que passam longe das elucubrações acadêmicas do tipo “competências e habilidades críticas para determinado campo de exercício profissional”. Lembremos, a esse respeito, que a etapa culminante desse embate não ocorre intramuros acadêmicos, mas nas assembleias congressuais e tribunais, onde nem sempre o embate de ideias é puro e desinteressado…
Se me parece óbvia a ideia segundo a qual um(a) bom(boa) psicóloga(o) está devidamente aparelhado(a) a oferecer escuta psicoterapêutica, disso não decorre a certeza de que outros ofícios deveriam estar, automática e forçosamente, excluídos desse campo de atuação profissional. Em termos muito concretos, até por inspiração em disputas recentes, no Brasil: uma boa enfermeira em unidade de cuidados paliativos, com pessoas sob seus cuidados em fase terminal de vida, essa profissional deveria estar excluída peremptoriamente da possibilidade de escuta psicoterapêutica daquelas pessoas supracitadas? Ora, essas mesmas enfermeiras, a bem da verdade, já vêm fazendo isso desde há muito, para alívio real de seus pacientes.
Não irei adiante – o intento era problematizar sobre, e não esgotar o tema. Que os nobres senadores dessa república, a cargo da tramitação do projeto acerca do reconhecimento, no Brasil, do espaço profissional das(os) psicoterapeutas, demonstrem sobriedade, honestidade intelectual e moral e compromisso social para cuidarem adequadamente do tema complexo da delimitação jurídica dos espaços das psicoterapias e dos(as) psicoterapeutas. Para o bem do ofício e de quem dele precisa.
Saúde Mental
Diz respeito a ser normativo, capaz de gerar normas, mais do que ser simplesmente normal, submetido às regras e expectativas a seu redor.
A Georges Canguilhem.
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Foto da Capa: Gerada por IA.