Neste ano, tem Copa do Mundo de Futebol Masculino. Cada Copa tem sua história e uma relação com seu tempo. Por exemplo, a atual já traz no nome esse nosso tempo de combate ao patriarcado. Não se denomina, como nas anteriores, simplesmente Copa do Mundo de Futebol. Há a forte presença do futebol feminino. É preciso especificar de qual modalidade se trata.
Também ligados às épocas estão os modelos táticos. E, junto com eles, os conhecimentos da preparação física, da fisiologia, da medicina esportiva, das tecnologias a serviço do esporte. Um outro recorte temporal está na leitura que se faz sobre os motivos das vitórias e das derrotas.
Nesse último ponto, é emblemático o caso da seleção brasileira masculina de 1982. Esse time que terminou a competição em quinto lugar é tido por muitos como uma das melhores formações da história dos escretes brasileiros. É preferido por muitos a uma formação campeã, como a de 1994.
De uns tempos para cá, revi alguns jogos e formei uma tese pessoal sobre os possíveis motivos da derrota dessa seleção recheada de craques como Zico, Sócrates, Falcão, Júnior e Éder. Antes da tese, é bom lembrar uma fala de Gilberto Gil no recente documentário com sua família. Retrucando seu filho Bem, flamenguista, Gil é torcedor do Fluminense, o cantor octogenário disse algo assim: o Flamengo perdeu porque é um jogo. É da lógica do jogo perder. Não se pode querer justificar a derrota, como se houvesse um motivo outro que não a própria contingência de se tratar de um jogo. E cita o hino do Flamengo, “Vencer, vencer, vencer”. Gil diz que isso é bem o pensamento flamenguista. Quando perdem, querem achar um motivo, como se não pudessem simplesmente perder.
Ok, ok, ok, como canta também o Gil. Mas vamos aventar, mesmo assim, uma hipótese para aquela perda, talvez até mesmo por ainda não termos admitido que aquele time não poderia não ter sido o campeão.
Contextualizo o pensamento tático que orientou aquela seleção como tendo nascido duas copas antes, em 1974. Depois de ganhar as copas de 1958, 1962 e 1970, o futebol brasileiro conquistou o patamar superior da categoria no mundo, tornando-se um padrão a ser imitado ou combatido. No entanto, esse modelo foi tirado da final pela seleção da Holanda, que trazia a novidade do chamado carrossel holandês. Era um esquema dinâmico, com os atletas não guardando posição, numa polivalência. Para dar conta desse esforço coletivo, a preparação física entrava com mais força do que até então.
A leitura da derrota foi que o padrão brasileiro, de toque de bola, cadência e criatividade individual, até ali vencedor, estava ultrapassado. A resposta brasileira veio na copa de 1978, com o técnico Cláudio Coutinho, um estudioso do futebol, não mais um ex-jogador como o Zagalo. “Overlapping”, ponto futuro, atletas polivalentes, um novo jargão entrou em campo. Mas novamente a vitória não veio.
Em 1982, com o técnico Telê Santana e uma nova geração de craques, o Brasil encantou o mundo. Mas perdeu. Penso que ali o modelo de Telê era unir o talento brasileiro com os princípios do carrossel holandês. Era uma tentativa de síntese entre a criatividade vencedora de três copas com a considerada modernidade tática.
Contudo, a mobilidade acabou por vezes tirando Zico de perto do gol, Cerezzo tendo que cruzar como ponta, e, sobretudo, levando a ninguém estar numa posição de marcação clara nos momentos decisivos da partida contra a Itália, que sacramentou o fim do sonho. O carrossel importado embaralhou as funções de cada jogador.
Ganharíamos com esses mesmos jogadores e um esquema a la Ênio Andrade, técnico gaúcho tricampeão brasileiro, famoso por organizar taticamente o time a partir das características de cada jogador? Não temos como saber. Mas veríamos o meia na meia, o ponta na ponta, o centromédio na frente da zaga, enfim, o velho futebol anterior ao dos holandeses.
Em 1994, Parreira pensou mais ou menos assim. Botou dois atacantes talentosos para resolver na frente, Bebeto e Romário, e o resto pra carregar o piano. E ganhou. Talvez seu mérito tenha sido o da humildade. Já perdemos o suficiente desde a última vitória em 1970. Vamos nos defender um pouco e sair na boa. Sua proposta não soou bem até hoje para o ufanismo do “melhor futebol do mundo” criado pelas vitórias anteriores. Mas, como disse uma vez Paulo César Caju ao ser questionado por um repórter na saída de campo, alegando que o Grêmio, mesmo ganhando, não havia jogado bem, respondeu: “O que importa são os dois pontos”. Hoje, são três pontos para cada vitória.
Também é de Caju uma outra visão sobre a derrota de 1974. Ele disse numa outra entrevista que, caso o gol que ele perdeu já na entrada da área, sem marcação, no jogo contra a Holanda, tivesse sido convertido, o Brasil teria ido para a final e quem sabe teria derrotado a Alemanha, sagrando-se tetracampeão. Se isso acontecesse, não teríamos toda essa valorização do modelo holandês e a desvalorização do brasileiro.
Enfim, mais simples, e talvez mais verdadeiro, é pensar como o Gil. Perdeu porque é um jogo.
E termino aqui com um poema do meu livro Quase eu, de 1992:
o goleiro vê o jogo ao contrário
o número um que ele carrega
não é de primeiro, mas de solitário
o gol que não houve, a bola na trave
ou presa entre as asas do seu voo de ave
são pontos a mais no seu placar tonto
seu companheiro, o goleiro adversário
com quem trama o placar ideal
zero a zero do começo ao final