Quando eu estava no começo da minha trajetória na clínica, me vi tomado por uma pergunta aparentemente banal, mas que só depois fui perceber os seus desdobramentos: que revistas deixar para os meus pacientes na sala de espera? Isso não é ensinado em nenhuma disciplina da faculdade de psicologia ou de medicina.
Claro que a minha dúvida não dizia respeito somente a questões de preferência de entretenimento, mas ela ecoava uma problemática bem mais delicada: o quanto dos gostos e interesses de um psicanalista podem ser evidentes para seus pacientes? Há algum problema em alguém saber que gosto de revistas sobre livros, que tenham uma linha editorial crítica, alinhada às pautas progressistas?
Sempre tive pavor de salas de espera assépticas: revistas Veja, Caras e Seleções deitadas preguiçosamente na mesinha de centro, uma música genérica tocando algum jazz enfadonho de elevador. Aliás, acho música na sala de espera algo cruelmente brega, mas não me furto a este crime estético porque o sigilo da minha profissão exige este cuidado. Minha saída é deixar tocando uma playlist escolhida por mim, que de alguma forma também reflita o meu gosto pessoal (o que não é garantia alguma de qualidade, diga-se de passagem).
Ou seja, respondendo ao terapeuta iniciante que uma vez fui: não vejo problemas em não me colocar como alguém “neutro”. A dita neutralidade do psicanalista não existe. Ponto. Agora, elaboro: mesmo a escolha por músicas e revistas supostamente “neutras” dizem muito sobre quem faz esta escolha. Afinal, se tem algo que sabemos muito bem – e que foi sublinhado tantas e tantas vezes nos últimos e infernais anos – é que isenção e neutralidade não só não existem como também denunciam cumplicidade com o status quo.
Em tempos em que milhares de brasileiros morreram por puro e simples descaso do governo e em que, infelizmente, voltamos ao mapa da fome, parece ingênuo, na melhor das hipóteses, dizermos que a neutralidade se configure com uma posição viável. Em um país em que a maldade e a ânsia assassina ditam o enredo social, dizer-se isento é compactuar com a política de aniquilamento que nos assola a todos.
Mas como este contexto chega até a sala de espera dos psicólogos, psicanalista e médicos?
Tornou-se lugar comum dizer que um terapeuta não deve se posicionar, que deve manter-se o mais “neutro” possível e explicitar de sua pessoa apenas aquilo que for impossível de esconder. Entretanto, creio eu, estes tempos dos terapeutas isentos já passou, até mesmo porque já se sabe que os efeitos terapêuticos não passam muito por aí. E também existe aqui uma impossibilidade: somos todos seres políticos, circulamos pelo mundo segurando em nossas mãos a ponta dos fios soltos do tecido social, mesmo que suponhamos “não gostar de política” ou que achemos que isso “não tem nada a ver com a vida cotidiana”. Aliás, talvez um dos grandes motivos para termos entrado nessa crise civilizatória sem tamanho tenha sido justamente termos nos esquecido de nossa responsabilidade como atores políticos.
E isso vale também para os clínicos das mais diversas áreas.
Ou será que você, leitor, gostaria de ser tratado por um dos médicos que aplaudiram em pé o delírio negacionista proferido pelo presidente em fala ao Conselho Federal de Medicina, ainda defendendo (como se fosse uma questão ideológica, e não científica) o uso de cloroquina em pacientes de COVID? Ainda: você se sentiria à vontade falando sobre sua sexualidade a um psicólogo que defende esta aberração chamada “cura gay”?
Pois então, leitor, em geral são estes os profissionais que se dizem “neutros”.
Mesmo a clínica dita “privada”, para começo de conversa, é também política, uma vez que está situada em um determinado bairro (o que implica suposições a respeito do valor cobrado pela consulta), em uma determinada cidade (e seus respectivos valores e normas sociais) e em um determinado país (que traz junto consigo toda uma história de formação do laço social). Além disso, todo ato clínico é um ato político na medida em que o sofrimento psíquico é determinado pela época em que vivemos: como não ser desatento em tempos em que somos convocados a todo momento a olharmos para os celulares piscantes? Como não nos sentirmos demandados a sermos hiper-ativos quando “tudo bem, correndo como sempre” é um bordão de auto-valorização?
Repare o leitor que o profissional que se diz “neutro” em geral não leva em conta as condições sócio-históricas e acaba reduzindo o sofrimento a elementos que supostamente não são atravessados pela cultura, como na já defasada hipótese do desequilíbrio químico que estaria (não está) na causa dos padecimentos psíquicos. Nestes casos, a neutralidade nada mais é do que resignação a crítica ao estado das coisas e, boa parte das vezes, estas práticas terapêuticas acabam se tornado condutas de adaptação às normais sociais vigentes.
Estar atento às determinantes sociais e culturais do sofrimento é uma convocação ética de todo profissional sério que esteja implicado no seu fazer clínico – aqui, estou falando de um profissional posicionado. O que não quer dizer, acho importante frisar, que o consultório deva se tornar um espaço de militância partidária. Vamos com calma aqui. Militância é outra coisa. Tudo bem o clínico ser um cidadão militante, mas o risco da militância na prática clínica é o de o profissional se tornar surdo ao fato de que o sofrimento é produzido justamente no contexto do mundo contra o qual nos revoltamos: um cenário ainda estruturalmente machista, falo-cêntrico, heteronormativo e racista. Almejar um outro mundo é importante e bastante salutar, desde que isso não nos cegue para a realidade que está aí colocada.
Da minha parte, sigo – a contragosto – deixando tocar uma playlist de rock dos anos 80 ou MPB para os pacientes que aguardam o horário da consulta. E também disponibilizo as últimas edições de revistas como a Quatro Cinco Um, a Cult e a Piauí. Deixo a Veja, a Caras e a Seleções para o adestradores de comportamento.