O inesquecível atacante Claudiomiro Estrais Ferreira (1950-2018), o “Bigorna”, ídolo da torcida do Internacional de Porto Alegre (autor do primeiro gol no Estádio José Pinheiro Borda, o Beira-Rio, contra o Benfica de Lisboa, em 6 de abril de 1969), que além de vestir o manto colorado (1967-1974), também honrou camisetas de clubes do quilate do Botafogo e Flamengo, do Rio de Janeiro, e da seleção brasileira em tempos áureos (chegou a jogar com Pelé na primeira metade da década de 1970), foi vítima de diversas piadas. Fruto da sua simplicidade e ingenuidade de garoto humilde, oriundo da periferia, situação comum na trajetória de grandes atletas brasileiros.
Contam (e obviamente deve ser inverídico) que no auge de sua trajetória, Claudiomiro decidiu construir uma casa. E que um repórter teria perguntado a ele se usaria azulejos nas paredes da cozinha e banheiro (o que é outra obviedade quase sem nexo em questionar). A resposta que teria dado é que surpreende. Teria dito que, como colorado, não usaria azulejo, mas sim “vermelhejo” (considerando a rivalidade entre os dois principais clubes da capital gaúcha).
Folclore do futebol à parte, há quem afirme que a palavra azulejo vem de azul. Se assim fosse, será que a resposta atribuída a Claudiomiro estaria errada? Logo, existiriam “vermelhejos”, “branquejos”, “verdejos”, “amarelejos”, etc.
Cláudio Moreno, reconhecido e excelente professor de Português e Literatura, que possui um blog na internet denominado de “Sua Língua”, recentemente tocou no assunto, provocado por uma professora de Lages, Santa Catarina. Para respondê-la, Moreno vasculhou seus documentos, e encontrou um e-mail do fotógrafo e antropólogo Luiz Eduardo Achutti, enviado de Paris. O professor Moreno revelou o conteúdo: “Escrevo apenas para dizer-te que vi ontem na TV uma matéria sobre o Museu dos Azulejos, em Portugal. O cara lá pelas tantas falou que a palavra azulejo não veio de azul (como está implícito no teu artigo), mas sim de uma palavra árabe, de som parecido, que teria algo a ver com revestimento. Não lembro qual era a palavra do Árabe, mas espero que mesmo assim faças bom proveito da minha dica” (MORENO, Sua Língua > origem-das-palavras, page 4).
A dica de Achutti permitiu que, com o auxílio de um dicionário (Corominas, dicionário etimológico em espanhol), Moreno confirmasse que azulejo não tinha nada a ver com azul. Vinha de al-zuleig ou al-zuleij, sendo que al seria apenas o artigo. Cláudio Moreno precisa dizendo que significa aproximadamente “pedrinha polida”. O próprio professor Moreno identificou que o erro já aparecia lá no século XVIII, quando o padre Rafael Bluteau (1638-1734), “se encarregou de espalhar a falsa etimologia em seu dicionário (“Diccionario da lingoa portuguesa”, de 1789, grifo do articulista): ‘azulejo – espécie de ladrilho enverinzado, com figuras ou sem elas; há brancos e verdes, mas pela maior parte são azuis, e desta cor tomou esta obra o nome’. Sendo ele o grande nome que foi em nossa lexicografia, desconfio que tenha contribuído – e muito! – para espalhar esta lenda” (Idem).

No Dicionário da Arquitetura Brasileira, de Eduardo Corona e Carlos Alberto Cerqueira Lemos, azulejo é definido como “placa cerâmica vidrada que serve para guarnecer paramentos” (CORONA & LEMOS, 1972, p. 60). Prosseguem estes autores: “A palavra é, sem dúvida, de origem árabe. José Pedro Machado, no seu ‘Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa’ vai buscar o termo formador em ‘az-zullaiju’. Assis Rodrigues, porém, diz que a primitiva palavra árabe era ‘a-zalujo’, que por sua vez significava superfície lisa e polida. Na verdade, porém, como veremos, os primitivos azulejos eram em relevo, fato que entra em contradição com a explicação etimológica” (Idem).
Corona & Lemos informam que a origem dos azulejos é oriental e deles têm-se conhecimento desde a civilização babilônica (Ibidem). Os árabes foram seus propagadores. Com a expansão do mundo árabe, o uso da cerâmica vitrificada e o desenvolvimento da azulejaria, se espraiou pelo Oriente Islâmico, norte da África e Europa Mediterrânica. Chegou na Península Ibérica, especialmente na Espanha pelas mãos de artesãos muçulmanos, desenvolvendo-se a técnica mudéjar entre o século XII e meados do século XIV. Málaga foi inicialmente a grande produtora e exportadora de azulejos, seguida de Valência (Manises, Paterna), Talavera de la Reina, Granada e Sevilha (Triana). Conservando as características originais orientais, as peças cerâmicas ainda eram em relevo. Informam Corona & Lemos que “da Espanha a arte do azulejo passou para a Ilha de Maiorca e daí para a Itália. Deste país espalhou-se pelo resto da Europa. Na Holanda a indústria de azulejos tomou grande impulso.” (Ibidem).
Em Portugal, é na virada do século XV para o XVI que o azulejo começa a se desenvolver em manufatura própria, inicialmente no seu território, logo chegando aos territórios conquistados. Do ponto de vista artístico os melhores azulejos portugueses são os produzidos nos séculos XVII e XVIII, de cor azul, o que contribuiu para que muitos buscassem a origem etimológica da palavra nesta coloração.
Como a ocupação do território brasileiro nos dois primeiros séculos deu-se no litoral, é nele que se encontra a quase totalidade da azulejaria portuguesa no país, bem como outras contribuições posteriores. Destacam-se inicialmente os chamados painéis de “azulejos historiados“, difundidos principalmente nos interiores das igrejas conventuais (sacristias e naves), nos interiores e nos claustros dos conventos, no nordeste (especialmente, na Bahia e em Pernambuco) e no Rio de Janeiro. Recebem esta denominação por apresentarem motivos figurados, se destacando cenas relacionados à religião católica. O uso do azul cobalto sobre o fundo branco, nestes painéis, levou, certamente a que se consolidasse ainda mais a busca, neste fato, a origem etimológica da palavra.
No século XIX, no litoral brasileiro, de Belém do Pará a Rio Grande, no Rio Grande do Sul, o azulejo passou a ser usado como revestimento de fachadas. De Portugal e da França eram estes azulejos estampados, que personalizaram especialmente a capital maranhense, “de extraordinária riqueza cromática e variadíssima padronagem” que “tornaram inconfundíveis as ruas daquela cidade” (CURTIS, 2003, p. 107).
Com a adoção da cozinha limpa, no último quartel do século XIX, e com o surgimento, logo depois, dos banheiros no interior das casas, a azulejaria voltou a ganhar impulso. O Brasil voltou a importar este material da Europa, de procedências variadas. Além de Portugal, vieram principalmente da França, da Holanda e da Bélgica. Exemplo de cozinha revestidas de azulejos no estilo Art Nouveau é a do Palácio das Laranjeiras (1909-1914), antiga mansão de Eduardo Guinle (1878-1941), edificação concebida por Armando Carlos da Silva Telles e Joseph Gire (1872-1933), no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Já um dos banheiros mais notáveis, com azulejaria de procedência belga, é o do Palacete Argentina, na Rua Independência, número 867, em Porto Alegre, projetado por Teófilo Borges de Barros (1882-?).
A confecção de painéis de azulejos historiados retornaria com o Centenário da Independência do Brasil, em 1922. Foi resgatado para viabilizar os revestimentos com painéis na edificação no estilo neocolonial que o francês Victor Dubugras (1868-1933) e Guilherme de Almeida, realizaram no Largo da Memória (1917-1922), no centro de São Paulo, e também no Rancho da Maioridade (1919-1922), que Dubugras realizou no Caminho do Mar, entre a capital e litoral paulista. José Wasth Rodrigues (1891-1957), concebeu os painéis de azulejos historiados para as duas edificações, confeccionados na Fábrica de Louças Santa Catharina, de Romeo Ranzini (1884-?), irmão do arquiteto Felisberto Ranzini (1881-1976).
O azulejo comparece na arquitetura moderna da primeira metade da década de 1940. Fato marcante foi a encomenda feita pelo Ministro Gustavo Capanema (1900-1985), em 1941, a Paulo Rossi Osir (1890-1959), do atelier Osirarte, de São Paulo, para realizar dois painéis visando revestir o térreo do edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde Pública (1937-1945), no Rio de Janeiro, concebidos por Cândido Portinari (1903-1962). O artista paulista explorou motivos marinhos como as conchas, hipocampos, estrelas-do-mar e peixes. Entre 1941 e 1945, as peças foram confeccionadas.
Logo em seguida, uma nova demanda foi feita ao mesmo atelier Osirarte (1944), para atender outra solicitação de Portinari que concebeu um amplo painel de azulejos historiados para a parede posterior da Igreja de São Francisco de Assis (1944), na Pampulha, em Belo Horizonte, em Minas Gerais. O artista brasileiro, influenciado por Pablo Picasso (1881-1973), inovou ao utilizar uma linguagem moderna. Agora o azulejo passa a aparecer no interior do Brasil. Antes, seu uso tinha se disseminado no litoral. Nas demais edificações que conformam o conjunto da Pampulha, concebidas por Oscar Niemeyer (1907-2012), o arquiteto especificou o uso de azulejos estampados para o revestimento externo, idênticos no Iate Tenis Clube (1942), na Casa do Baile (1943) e no Cassino (1943).
Em Lisboa, capital de Portugal, país onde a arte da azulejaria foi uma das mais avançadas do mundo ao longo de séculos, material essencial na cultura arquitetônica lusitana, existe o Museu Nacional do Azulejo, inaugurado em 1965. Fica numa área próxima ao rio que banha a cidade, o Tejo, na Rua Madre de Deus, número 4, próximo também da estação de Santa Apolônia. Ocupa as dependências do que no passado foi o Convento da Madre de Deus, fundado em 1509, pela rainha Dona Leonor (1458-1525), esposa de Dom João II (1455-1495) e irmã de Dom Manuel I (1469-1521). Anualmente o museu recebe cerca de duzentos mil visitantes.
A ocupação do edifício teve o respaldo do engenheiro João Miguel dos Santos Simões (1907-1972), vogal efetivo da Academia Nacional de Belas Artes, responsável pela Brigada de Estudos de Azulejaria da Fundação Calouste Gulbenkian e conservador-ajudante do Museu Nacional de Arte Antiga. Para que o eleitor saiba Santos Simões, como ficou conhecido, é a maior autoridade portuguesa sobre o assunto. Na sua produção bibliográfica há inclusive um clássico sobre a azulejaria no Brasil, intitulado “Azulejaria Portuguesa no Brasil (1500-1822)”, publicado em 1965, pela Fundação Calouste Gulbenkian, cujo prefácio é assinado pelo advogado, jornalista e escritor mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969), então Diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), uma das maiores referências quando o assunto é patrimônio cultural, no Brasil.
O visitante, ao chegar no Museu Nacional do Azulejo, em Lisboa, é logo esclarecido na primeira área expositiva: “AZULEJO – Com origem na palavra árabe, azzelij ou al zuleycha, que significa ‘pequena pedra polida’, designa uma peça cerâmica, geralmente quadrada, em que uma das faces é vidrada”. Trata-se, pois, de uma pedra artificial (um biscoito de cerâmica, vitrificada em uma de suas faces, colorida e polida).
Pelo exposto, conclui-se que a palavra azulejo vem do árabe e não de azul. Este artigo é dedicado ao professor Cláudio Moreno, aos ex-alunos e aos atuais alunos do autor.
Bibliografia:
CORONA, Eduardo & LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. Dicionário da Arquitetura Brasileira. São Paulo: EDART – São Paulo Livraria Editora Ltda., 1ª edição, 1972.
CURTIS, Júlio Nicolau Barros de. Vivências com a Arquitetura Tradicional do Brasil: registros de uma experiência técnica e didática. Porto Alegre: Editora Ritter dos Reis, 2003
MORENO, Cláudio. Sua língua – Conteúdos sobre nossa Língua Portuguesa.
SIMÕES, João Miguel dos Santos. Azulejaria Portuguesa no Brasil (1500-1822). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1965.
Imagem:
*Figura 1 – Convento de São Francisco, claustro, painel de azulejo historiado intitulado “A natureza é a melhor moderadora”, Salvador-BA. Acervo digital da Unesp, foto: Percival Tirapeli.