De todos os sinais que recebemos vindos do espaço, apenas interessam aos astrônomos aqueles que são ritmados, que não são um simples contínuo sonoro.
Este é um dos critérios para sabermos se vale ou não a pena investigar a origem de tal sinal: em teoria, somente formas de vida inteligentes conseguem produzir pausas sonoras.
A natureza, por si só, ou se movimenta da forma cíclica (o nascimento e o pôr do sol, as fases da Lua, a translação dos planetas em torno de uma estrela) ou contínua (o fluxo de um rio em direção à jazente, a inércia infinita de um objeto no vácuo).
O intervalo é marca humana na temporalidade da vida.
Desde antes do nosso nascimento, nós estamos expostos à constância dos processos naturais: escutamos o som ritmado do batimento cardíaco de nossa mãe, por exemplo, bem como o ruído da circulação sanguínea em suas veias. Ainda que tão pequenos não consigamos identificar a origem destes barulhos, mesmo assim esse contínuo já nos marca, nos inscrevendo neste mundo que nos é lar, mas também que nos parece tão alienígena.
E também, ainda no útero, temos contato com alguns sinais vindos de fora: o alarido da buzina do carro no trânsito difícil, a voz dos avós que falam “com a barriga”, o latido do cachorro do vizinho. Recebemos sinais da presença da vida inteligente “fora” já em estado de prematuridade.
Quando miramos os nossos apetrechos tecnológicos para o espaço, só nos interessam os ruídos, só nos faz questão aquilo que tem ritmo.
É impossível fazer música sem a imposição de um silêncio. Quase como por definição, fazer música é saber em que ponto o fluxo deve ser interrompido.
O meu leitor deve estar estranhando que o psicanalista que costuma ler esteja falando de sinais extraterrestres e de teoria musical. Peço que me acompanhe.
Ora, toda vida tem um ritmo que lhe é próprio.
Por vezes, nós nos entregamos a uma rotina de repetição: acordar às 6h15, abrir a torneira do chuveiro enquanto olha as notificações no celular, entrar e sair do banho, vestir calça-cinto-camisa, esquentar a água do café, encher a xícara, beber o primeiro e o último gole, pegar as chaves na mesinha, abrir e fechar a porta e sair para o trabalho.
No dia seguinte, tudo igual.
Por isso amamos os finais de semana: são os dias em que podemos fazer música.
Repare o leitor que descrevi um começo de dia que, visto de longe, parece sempre o mesmo, como o nascer e o pôr do sol ou a vazão de um rio rumo à inexorável jazente.
Dito de outra forma: para quem só vê as nossas manhãs, talvez pareça que ali não tem muita vida inteligente, não.
A questão é que podemos aumentar o escopo de observação e constataremos que, infelizmente, não é lá muito difícil viver uma vida inteira assim, aprisionados em um dia a dia sem ritmo, suspensos na temporalidade cíclica que nos é imposta por uma cultura que olha desconfiada para tudo que foge do padrão.
A sociedade neoliberal não suporta os ritmos singulares. O capitalista tardio não sabe cantar, quem dirá dançar.
As crianças, aliás, aprendem isso muito rapidamente. Se o leitor tiver filhos – ou tiver convivido com crianças pequenas – sabe muito bem que há uma fase do desenvolvimento em que os pequenos são monotemáticos: dizem não para tudo. “Filho, arruma teu quarto!”. A resposta imediata: “Não”. “Ok, filho, então deixa o quarto como está”. Surpreendente, a resposta: “Não”, também.
O que está em jogo, neste período, é a consolidação da capacidade de dizer “não” a uma demanda, mesmo que isso implique negar algo que na verdade até se queira.
Dizer não é uma conquista emancipatória, é fazer intervalos em uma demanda que parece cíclica. “Todo dia isso, mãe?”, diz a criança em busca de um ritmo próprio. Na melhor das hipóteses, os pais vão tomar a sério essa questão: “Todo dia isso?”.
Não são poucos os pacientes que chegam ao meu consultório fazendo versões próprias desta pergunta: “Será que todo dia vou ter que sentir crises de ansiedade?”. “Será que sempre vou acabar me achando um péssimo pai?”. “Será que eu não vou conseguir nunca romper esse padrão?”.
Em outras palavras, eu poderia dizer que muitos dos que me contam o seu sofrimento estão me pedindo ajuda para dizer “não” a alguma demanda que lhes aprisiona em um roteiro pré-definido, em uma constância na qual não se reconhecem. Muitas vezes, aliás, nem percebem que estão dançando de acordo com uma música que não escolheram, que já estava tocando na pista quando chegaram.
E isso é bastante grave, afinal, quando olhamos para trás em nossa história, nós só lembramos daqueles momentos em que fizemos um intervalo na continuidade sem sentido da vida. Ou por acaso você lembra, caro leitor, do que comeu no almoço há vinte dias? Ou de como foi escovar os dentes antes de dormir no domingo passado? Ou do caminho que fez de carro até seu trabalho antes de ontem? Pois então.
Mas aposto que você se recorda da vez em que estava naquele restaurante que gosta e derrubou molho de tomate na camisa branca, mesmo tendo uma reunião importante à tarde. Também tenho certeza de que você tem em sua memória o dia em que sua filha nasceu. Ou em que um de seus pais morreu – todo rio chega à jazente, queríamos ou não.
Ou aquele dia em que você buscou a pessoa amada no aeroporto.
Ou aquele outro dia em que você se despediu da pessoa amada no aeroporto.
Fato é que nós nos narramos justamente tendo como referência os momentos em que dissemos “não” (ou em que a vida nos disse “não”): quando enchemos o saco de nossa faculdade e mudamos para outro curso, quando decidimos que um laço afetivo não fazia mais sentido e nos distanciamos, quando nos demitimos para tentarmos fazer algo mais significativo na vida.
Quando olhamos para trás, só conseguimos ver os momentos em que nos permitimos o privilégio de um intervalo. Quando silenciamos, mesmo que momentaneamente, o canto das sereias das demandas sociais e nos permitimos olhar para nós mesmos e nos perguntarmos se há vida inteligente do lado de cá do cosmos.
Quando nos pegamos estranhando a nós mesmos, descompassados com a melodia que sempre havíamos tocado, abertos à visita deste ritmo alienígena tão criativo a que chamamos desejo.