A primeira vez que me lembro de ter ouvido Beatles foi na casa de uma vizinha do nosso apartamento. Eu não devia ter mais do que sete anos. Ela tinha os long plays saídos do forno por aquele período. Depois, aos doze anos, fomos a São Paulo visitar a parte paulista da minha família. Lá, o marido de uma das minhas primas, mostrou o “Band on the run”, do Paul McCartney, também lançado há pouco. Desde esse dia, fiquei para sempre fã dele.
Fui crescendo e Beatles soava para mim como uma banda do passado, lá da minha infância. Ao ver um show do Júlio Reny e a Guitar Band, com Frank Jorge na guitarra, Carlo Pianta no baixo, Bolada na bateria e o Júlio na outra guitarra, entendi Beatles. É uma guitar band. Passei a ouvir tudo, desde os primeiros aos últimos discos do quarteto de Liverpool.
A parte mais antiga, aparentemente a mais simples, tem toda a dinâmica das duas guitarras com o baixo e a bateria, um som cru e com tudo no lugar. Depois vai aparecendo a face mais inventiva, com a incorporação de instrumentos de orquestra, em arranjos cada um trabalhando a singularidade de cada canção.
Até hoje, Beatles, devido aos percalços de um longo convívio entre quatro jovens, três deles amigos de infância, que vão amadurecendo juntos, é motivo da coluna de fofocas do show business. A separação trouxe uma série de fixações de imagem para cada um dos quatro.
O tempo vem mostrando que todos os quatro escapam às tentativas de redução das suas personalidades. Por exemplo, há um vídeo no YouTube em que uma série de grandes bateristas do rock comenta a originalidade e a criatividade da bateria de Ringo. Em várias músicas da banda, há frases da bateria que integram a própria composição das canções, indo muito além do mero acompanhamento.
Ringo inovou na história da bateria desde a maneira de segurar as baquetas, equiparando mão direita e mão esquerda, até a capacidade para tocar em compassos invulgares, empurrando “a escrita de temas musicais para áreas nunca antes alcançadas”. Dois exemplos disso são “All You Need Is Love” em 7/4 e “Here Comes The Sun” com passagens repetidas em 11/8, 4/4 e 7/8, no coro.” Como aponta Edcarlos da Silva, no blog Canal dos Beatles.
A biografia “Many years from now”, lançada quando Paul fez sessenta e quatro anos – o título, Daqui há muitos anos, é um verso da música que fala “quando eu tiver sessenta e quatro” – é outra maneira de ver várias contribuições dele na história das invenções criativas da banda. O documentário “Get Back”, com as inúmeras horas resgatadas do quarteto no estúdio, mostra como Paul é um músico obstinado, detalhista, que leva à exaustão suas buscas por atingir um som refinado.
Nesse mesmo documentário, num dos momentos da crise de relacionamento que acabou afastando temporariamente George, Lennon reassume seu papel de líder, como o de um irmão mais velho, para recolocar o grupo na harmonia do convívio.
Harrison estava com uma série de canções que dariam para gravar vários discos dos Beatles. John ouve essa afirmação de George e, no entanto, não leva adiante a proposta de colocar mais músicas do guitarrista. A banda já tinha seus compositores predominantes, Lennon e McCartney. O talento total de George acabou ficando para a sua carreira solo. Todos cresceram tanto que suas canções não couberam mais numa única banda. Quem ganhou com isso foi a gente, que pode ouvir até hoje álbuns de John, de Paul, de George e de Ringo, cada um com sua marca pessoal e intransferível.