Um novo ciclone e dessa vez 46 pessoas (até o momento) perderam suas vidas devido a uma tragédia evitável. Este ano, em São Paulo, dezenas de outras pessoas também faleceram por conta dos deslizamentos também causados pela chuva no Vale do Paraíba. Ano passado, em Pernambuco e outros estados do Nordeste, mais de 120 mortos também por deslizamentos.
Estaríamos ficando amortecidos com tantas perdas? Será que depois da tragédia da pandemia do COVID-19 cada vida perdeu seu valor?
De um lado do problema, conhecemos essas chuvas, esses alagamentos, esses deslizamentos. Eles nos acompanham há décadas. Em São Paulo, 55 anos atrás, deslizamentos haviam matado centenas de pessoas na mesma região. No Rio Grande, temos a enchente de 1941 que deixou tanto trauma em Porto Alegre. Mas temos dezenas de eventos mais recentes, a maior parte deles com danos reduzidos (mesmo que concentrados entre os mais pobres), como mostra o gráfico abaixo, da Secretaria do Planejamento do Estado (veja o relatório completo aqui).
Gráfico de reconhecimento anual de ocorrências de inundação, no RS, no período de 2003-2021:
Fonte: Secretaria do Planejamento do Rio Grande do Sul, dados S2iD/MDR.
No Vale do Taquari, região afetada na última semana, enchentes e inundações são corriqueiras. Em 2020, Lajeado instalou um monumento para registrar as cheias que merecem ser chamadas de “históricas”. Ao menos 25 ocorrências figuram no monumento, mas dezenas de outras cheias menores ocorrem a cada ano, especialmente no inverno. O Parque dos Dick, em Lajeado, é alagado todo ano pelo extravasamento das águas nas margens do rio que acompanham a cidade, como mostra a reportagem do jornal local “A Hora” de 2016. Na imagem, as águas estavam em 25,25m de altitude. Ontem, chegaram a 29,45m, como mostra o post no perfil da Prefeitura Municipal, muito próximo do valor que chegou em 1941, quando estava em 29,92m.
Reprodução do Jornal A Hora, de Lajeado, com imagem aérea das áreas atingidas por cheias em 2016. Fonte: Jornal A Hora.
Reprodução de card da Prefeitura Municipal de Lajeado, informando o nível do rio em 05.09.2023. Fonte: perfil do Instagram da Prefeitura Municipal de Lajeado.
Então o que há de novo neste ano? As dezenas de vidas perdidas em toda a região certamente contribuem para o choque. Muçum, Estrela, Encantado, Lajeado, Roca Sales, Arroio do Meio e outras cidades afetadas são também testemunhos de que este não foi um incidente restrito a uma das curvas do rio ou a uma comunidade ribeirinha, mas a grande parte do Vale do Taquari, uma região do estado que conta com uma das redes mais densas de pequenas cidades, justamente por causa da conexão que o rio que agora transborda trouxe durante a era do transporte fluvial.
Neste ponto, me parece que podemos pensar, então sobre o que encaramos enchentes como esta, que chamamos de “históricas” . Primeiro, elas nos mostram que esses eventos não são de todo isolados. Apesar do título “histórico” inspirar uma ideia de serem excepcionais, vemos que a cada 10 ou 20 anos algo sério acontece. Segundo, sabemos que devido às mudanças climáticas, essas cheias (e deslizamentos causados por elas) serão mais cada vez frequentes. Talvez nosso critério do que mereça ser considerado histórico tenha que ser revisado. Com cheias mais frequentes, teremos “extremos” cada vez mais próximos uns dos outros.
Outro perigo é a dessensibilização. Estragos cada vez maiores podem diminuir nossa sensibilidade ao número de mortos, as áreas afetadas, às perdas de quem está exposto aos desastres. No dia a dia, avisos frequentes mesmo que de autoridades como a Defesa Civil, podem passar despercebidos, com o que chamamos de “fadiga de aviso”: de tanto ouvir, não levamos a sério. No próximo final de semana, já temos uma nova chuva intensa no estado, como informa a MetSul. Ao longo deste ano, o El Niño promete ser amplo e intenso, com possibilidade de novos ciclones e chuvas muito concentradas, como mostra o mapa abaixo, do serviço meteorológico dos EUA, NOAA. Nela, vemos uma Amazônia seca e concentração de chuvas ao redor do Guaíba e Laguna dos Patos.
Finalmente, essa história deveria nos ensinar algumas lições. Deveríamos nos preparar, deveríamos pensar em como construímos nossas cidades e quem são as pessoas que estão expostas aos desastres – sejam eles históricos ou não. Uma lição importante é que muitas das nossas cidades estão nas margens de rios, lagos, ou do mar. Em realidade, quase 90% das chamadas “cidades globais” estão em zonas costeiras – e, portanto, expostas ao aumento do nível do mar, de marés mais fortes e tempestades costeiras (mais info neste link e neste artigo (ambos em inglês). No Brasil, a maior parte da nossa população e riqueza está no litoral do Atlântico, com problemas semelhantes. No Rio Grande do Sul, centenas de cidades estão à beira dos rios e córregos que conectam as três bacias que atravessam o estado: do Guaíba, litorânea e do Rio Uruguai. Todas essas bacias já foram afetadas por enchentes e inundações – e as expectativas é que estes eventos vão se agravar no futuro.
Uma segunda lição é que construímos nossas cidades como se esse amanhã fosse distante. Em verdade, lidamos mal com riscos. O princípio da precaução – ou como diziam nossos avós: prevenir é melhor que remediar – raramente tem espaço em discussões imediatistas que focam na “crise de hoje”. A atenção dedicada a esse futuro é roubada todos os dias pelo COVID-19, inflação, o último escândalo em Brasília e tantas outras urgências. A sensação, inclusive, pode ser avassaladora: sem tempo para respirar hoje, como podemos pensar no amanhã? Felizmente, temos profissionais no amanhã a nosso dispor, precisamos é apoiá-los.
Estou falando aqui dos acadêmicos, cientistas, funcionários públicos (sim, eles!) e tantos outros que se dedicam a planejar nossas cidades, pensar nos limites do crescimento que podemos e devemos ter. Em suma, se dedicam a focar no longo prazo e não nos ganhos imediatos, sejam estes do mercado ou da próxima eleição. Claro que existem maus exemplos, mas a sociedade deve tirar essa máscara que coloca no governo toda a culpa do que não funciona. Trabalhei com mais de 50 prefeituras do RS de todos os partidos e tamanhos. Posso dizer que o clichê do sistema público ineficiente é uma “fake news” tão antiga, que nem a questionamos mais. A minha impressão inclusive é semelhante aqui na Alemanha (onde moro há 4 anos).
Mas voltando as cheias, a função – e paixão – de grande parte desses profissionais é pensar adiante e oferecer a sociedade essa “visão além do alcance” dos problemas do dia a dia. Tenho que ser honesto aqui: sou parte deste grupo e falar dele é defender a minha visão de mundo e experiência pessoal e profissional. Mas vejo estas mortes em Muçum e Roca Sales como problemas que poderíamos prevenir. Centenas de outros profissionais, ainda mais experientes que eu, também vem estas perdas assim.
O Serviço Geológico do Brasil, por exemplo, produz mapas e relatórios a todo momento mostrando como nossas cidades estão expostas. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas também tem uma sessão dedicada a entender como têm sido e como serão os desastres no país. É do IPT que vem a metodologia usada por uma dezena de universidades para produzir as chamadas “cartas de susceptibilidade a movimentos gravitacionais de massa e inundações”. A produção desses mapas é recente, a metodologia do IPT é de 2013, e mostra o longo caminho que temos pela frente.
Estes mapas e a Lei Federal 12.608, de abril de 2012, foram importantes passos para prevenir desastres, na esteira dos desastres em Petrópolis e a região serrana do Rio de Janeiro em 2011. Os mapas e a lei orientam o planejamento dos municípios a evitar essas áreas. O IPT preparou um guia para os gestores (disponível aqui) para facilitar essa aplicação. O Governo do RS tem também um plano de redução de riscos de desastres, desde 2017 . Quando essa discussão chega nos municípios, no entanto, a briga é dura.
De um lado, os profissionais que se dedicam ao planejamento são poucos e não têm os recursos necessários em software, formação especializada e, principalmente, tempo. O mais usual é que os profissionais que realizam os planos a longo prazo dediquem a maior parte de seu tempo “carimbando projetos”. São raras as prefeituras que conseguem, como São Paulo, ter departamentos efetivamente dedicados a pensar o seu futuro. Sei disso pois durante mais de uma década me dediquei a fazer exatamente isso para os municípios do RS, como uma consultoria especializada em planejamento.
De outro lado, os interesses imobiliários e eleitorais são fortes. O setor da construção civil raramente pensa a longo prazo. Em geral, é voraz na busca por oportunidades de localização que sejam próximas aos locais mais valorizados, mas ainda estejam “livres” para serem incorporadas. Essas “oportunidades” estão, em muitos casos, em áreas de risco e áreas de preservação ambiental. Eu já escrevi sobre essa dinâmica em meu mestrado e o economista e professor Pedro Abramo produziu um excelente corpo de pesquisa sobre o assunto. Mas casos como a Fazenda do Arado e as casas de luxo nas ilhas de Porto Alegre, são similares. No Guarujá, condomínios fechados sofreram com uma inundação este ano, mostrando como mesmo casas milionárias podem estar expostas. Os mais pobres sofrem com isso com enorme frequência, mesmo que a motivação de morar exposto seja outra. Para eles, as chances de conseguir um terreno para suas casas são muito limitadas e é comum que estejam em baixios, ribanceiras e outros locais de risco. Nos últimos 10 anos, Porto Alegre aumentou a população pobre nestas áreas em 90%, por exemplo, chegando a 84 mil famílias.
Em suma, o que seria considerado “histórico” há alguns anos pode se tornar corriqueiro. Mostra disso é que a ONU já vê seus recursos para alívio e resposta aos desastres cada vez mais como um “cobertor curto”. Enquanto escrevo isso, há crises no Marrocos (terremoto), Bangladesh o Índia (seca), Lituânia, Polônia e boa parte do leste da Europa (seca) entre outras, como mostra o mapa abaixo (da aplicação Disaster Ninja). Devido ao aumento repentino de desastres em 2021 e 2022, hoje apenas cerca de 30% da demanda por recursos humanitários da ONU está disponível. Essa situação de falta de recursos para reconstrução pode piorar e tende a afetar as cidades brasileiras em breve.
Para finalizar, é importante apontar caminhos.
- pensar a longo prazo. Isso inclui aceitar restrições no curto prazo que garantem nossa sustentabilidade, como preservar áreas verdes ao longo dos cursos d´água, limitar o uso de combustíveis fósseis e planejar as cidades de forma controlada. Sabemos que é mais econômico prevenir, mas na hora de decidir, somos levados (como sociedade) a apostar no curto prazo.
- Promover o desenvolvimento econômico como aliado de desenvolvimento social. Os problemas sociais da pobreza são vetores para aumentar a ocupação de áreas de risco por pessoas que tem pouca capacidade de suportar os riscos e vão demandar ajuda social. Podemos inverter essa lógica perversa calcada em enorme sofrimento humano e impulsionar o desenvolvimento social para evitar problemas ambientais futuros.
- investir recursos hoje para ter ganhos futuros, como prevenção a desastres, identificar a evitar ocupar áreas de risco e monitorar a evolução dos riscos. Nesse ponto, é fundamental financiar instituições públicas de pesquisa, planejamento e gestão de riscos. Por não terem foco no curto prazo (seja o relatório do trimestre ou a eleição em 2 anos), podem se concentrar na preparação e prevenção.
Se você concorda com estes pontos, mas se pergunta o que pode fazer, ofereço algumas recomendações. Primeiro, informe-se com fontes confiáveis sobre as mudanças climáticas. Temos ótimas ONGs nacionais e internacionais educando sobre o assunto. WRI, WWF, e ONU têm materiais acessíveis sobre o que há de mais atual na ciência.
Segundo, você pode entender e participar nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. A Rede ODS Brasil aponta caminhos e tem atuação em todo o Brasil. O Governo Brasileiro assinou declarações se comprometendo a atingir os objetivos, mas são os municípios que tem que “carregar o piano”. Portanto, cabe pressionar na esfera local para que existam ações efetivas – por exemplo, onde anda o Plano Porto Alegre Resiliente? – e demandar de Brasília os recursos. Aliás, estes não só não aumentam, como diminuíram drasticamente (em 99% em alguns temas!) no orçamento deste ano (com decisão do governo passado) afetando inclusive o RS .
Terceiro, pressionar seu vereador, prefeito, deputado, governador e presidente para que tomem medidas de prevenção, invistam em ciência e planejamento urbano. Você também pode organizar sua comunidade, se juntar as dezenas de grupos de voluntários que estão atuando para mitigar desastres. Se você está em Porto Alegre, pode ainda se juntar ao POA Inquieta, onde temos grupos dedicados a crise climática, a sustentabilidade e a arquitetura e urbanismo, entre outros.
Por último, devo estender meu pesar às famílias de todas as vítimas dessas chuvas. Espero que juntos possamos evitar para outras tantas possam ser evitadas no futuro.
Alexandre Pereira Santos é articulador do POA Inquieta (spin arquitetura e urbanismo), doutor em geografia pelo Centro de Estudos da Terra e Sustentabilidade da Universidade de Hamburgo e trabalha como pesquisador sobre vulnerabilidade às mudanças climáticas na Universidade Ludwig Maximilian, em Munique, Alemanha.