Os preparativos físicos/estruturais para a COP30 estão gerando inúmeras críticas, pertinentes e importantes para que correções de rumo sejam feitas o quanto antes. Já no campo teórico, há iniciativas extremamente positivas para que o Brasil seja um protagonista de fato no debate da pauta mais existencial do planeta. “Líderes dos 193 países-membros da ONU se reunirão no coração da Amazônia. Tem muito em jogo. A seriedade e o pragmatismo do Brasil serão postos à prova”, diz Lourenço Bustani, sócio-fundador da Mandalah (SP). Ele coordenou, pro bono, junto com seu sócio Victor Cremasco, a elaboração do estudo “O Brasil que o Brasil quer ser”, tendo como ponto de partida um questionamento: “Diante desse ano-chave, que Brasil é esse que nós enxergamos e projetamos no futuro, e que queremos apresentar ao mundo?” Vozes de 90 lideranças e pesquisadores e mais de 3.000 brasileiras e brasileiros, de todas as regiões do país, expressaram suas opiniões.
É um trabalho minucioso, revelador e inspirador, de belíssimo visual, para ser lido com atenção, pois abre muitas portas para reflexão e ações concretas. Um dos principais pontos – quiçá o principal – é “Ampliar a noção de Potência Ambiental para Potência SocioAmbiental, o que contempla outro trunfo brasileiro: a diversidade da nossa população e nossa cultura.” De indígenas a CEOs, passando por diplomatas e artistas, a projeção do Brasil como potência ambiental é amplamente compartilhada entre especialistas e lideranças ouvidas. “Esse é um protagonismo já esperado do Brasil e já autorizado pelo mundo”, declarou o artista Gilberto Gil.
O estudo aponta que, para ocupar o lugar de “Liderança Socioambiental”, o Brasil precisa de uma abordagem integrada que combine proteção ambiental, inovação tecnológica, respeito aos direitos humanos e a promoção de uma economia sustentável. Essa transformação requer um esforço contínuo de governos, empresas e sociedade civil, além de uma postura proativa no cenário internacional. Com seus vastos recursos naturais e biodiversidade, o Brasil tem todas as condições para se destacar como um modelo de sustentabilidade, desde que adote políticas coerentes, transparentes e eficazes. “Precisamos dar clareza que o Brasil tem uma rota absolutamente clara e definida, a nível de Estado, para ser uma referência em economia de baixo carbono. Essas coisas estão postas na mesa. Se soubermos conduzir, poderemos levar o Brasil para outro patamar”, afirmou Gustavo Werneck, CEO da Gerdau. É aí que se destaca o entendimento de muitos entrevistados de que não existe Potência Ambiental sem pessoas: o conceito de “floresta de pé” por vezes gera no imaginário coletivo uma imagem de floresta intocada, mas ela é resultado do manejo e do trabalho das pessoas. A interdependência entre biodiversidade e sociodiversidade é um imperativo de um futuro sustentável.
Este é um debate fundamental, promissor, e me fez lembrar de uma palestra do biólogo e escritor Mia Couto, proferida em Maputo, em 2004: “(…) O que importa reter é que tudo que estamos discutindo se baseia não numa visão holística de mundo, mas em dualidades criadas por Descartes no fim do século XVI: a dicotomia entre ‘natural’ e ‘social’, entre ‘conservação e utilização’, entre ‘homens e natureza’. Continuamos prisioneiros de falsos conflitos, entre a ‘exploração’ e a ‘preservação’, entre aquilo que é ‘impuro’ e ‘virgem’, entre o que é ‘transformado’ e o que é ‘selvagem’. Na realidade, nunca houve vida selvagem sem participação das sociedades humanas, a fauna bravia sempre aconteceu com interferências humanas (pelo menos desde há 250.000 anos). Somos produto e produtores do ambiente. (…)”. Ele dissertou sobre os diversos aspectos de “conservação, ecoturismo, comunidades locais, gestão participativa de recursos naturais”, analisando tendências globais e influências nas ações locais: “Não podemos ficar na indecisão porque não sabemos. Pior que não saber, é pensar que já se sabe.” E nas conclusões, definiu: “(…) A questão da conservação, ou melhor dizendo, da gestão sustentável dos recursos naturais, só poderá ser uma realidade política depois de ser uma realidade cultural (…)”.
Para se transformar em um dado de cultura, há que se assimilar uma vivência. Daí a enorme importância do estudo “O Brasil que o Brasil quer ser” ter revelado que a Amazônia aparece, pela primeira vez, como a principal representação simbólica do povo brasileiro, desbancando o Rio de Janeiro (53% a 36%, respectivamente). Essa identificação coletiva com a floresta, com a nossa origem, leva ao território, à busca da vivência, à responsabilidade e à principal “missão” de impactar quem está dentro da Amazônia, vivendo-a às avessas, explorando os recursos naturais em um nível assustadoramente predatório. É dramático, pois quem detém o poder econômico – e teria recursos para fazer a diferença – se empata em desmatar dentro de suas propriedades: 71% da extração ilegal de madeira está concentrada em propriedades privadas com Cadastro Ambiental Rural (CAR), aponta o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). “Isso revela que muitos proprietários estão usando o CAR como escudo para práticas ilegais, aproveitando-se da lentidão na validação e fiscalização desses cadastros”, esclarece o CEO da Carbon Zero, Carlos Alberto Tavares Ferreira, que publicou, recentemente, um ensaio fundamentado em dados e análises, mostrando a complexidade da questão, pois envolve inúmeras engrenagens de destruição: grilagem, fraudes legais, corrupção ambiental, cumplicidade internacional por ignorância ou conveniência, etc. Outro dado dramático do desmatamento é que 16% ocorre em Terras Indígenas, especialmente nas regiões do Amazonas, Roraima e Maranhão, territórios que deveriam estar entre os mais protegidos do país. Ferreira considera a “conivência e omissão institucional” como a espinha dorsal do problema, que acontece por um modelo de Estado fragilizado, capturado ou intencionalmente desmontado. “Quando o Estado se omite, o crime se organiza”, aponta.
Ailton Krenak, ativista, filósofo e imortal da Academia Brasileira de Letras, declarou para o estudo “O Brasil que o Brasil quer ser” que é preciso reconhecer a autossabotagem que existe por parte de muitos dos próprios brasileiros, “que deterioram e desperdiçam nossas instituições, conquistas e potenciais em prol de interesses particulares. Existe um Brasil que não quer que o Brasil dê certo”. É realmente gigantesca a nossa tarefa para alcançar o protagonismo que nos cabe na pauta ambiental mundial, que passa por superar um passado de feridas que persistem, enraizadas no projeto colonial escravagista que nos fundou. Mas o estudo também revelou, na visão de conselheiros, especialistas e lideranças, uma tendência importante de mudança no significado de esperança, com uma nova interpretação que abre caminhos. “Se antes o conceito da esperança estava atrelado a um futuro idealizado — uma espera constante pelo momento em que o Brasil finalmente dará certo — agora cresce a consciência de que o país está se tornando um berço de esperança para um mundo em crise e plena reconfiguração.” Essa transição é extremamente importante, já que o segundo sentimento mais presente entre a população, em relação ao país, é a frustração (34%). A tendência, assim, é a esperança que lidera o sentimento dos brasileiros (45%) se tornar ativa: “Nós somos a esperança”, conclui o estudo.
“O Brasil que o Brasil quer ser” tem 112 páginas e foi encomendado pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável (CDESS), também conhecido como “Conselhão”, um colegiado composto por representantes da sociedade civil, que apoia a Presidência da República na formulação de políticas públicas ligadas ao desenvolvimento social, econômico e ambiental do país. Está disponível no site da iniciativa. Alguns outros pontos:
— Estrangeiros acham que o Brasil é “um amigo de fim de semana, mas não para as segundas-feiras”, em função de uma percepção de nossa falta de seriedade e pragmatismo.
— O reconhecimento crítico e duro dos brasileiros a respeito de nossos problemas estruturais emperra nossa capacidade de projetar o país num lugar mais luminoso.
— É hora de romper com o vira-latismo e olhar para o Brasil a partir do Brasil.
— Num planeta aquecido e em guerra, o Brasil tem o que o mundo precisa, com condições e credenciais para dar enormes contribuições em pautas ligadas ao clima e promoção da paz.
— Nossa potência está em nossa sociobiodiversidade; naquilo que nasce na interseção entre nosso patrimônio natural e nosso patrimônio sociocultural, evidenciado nos 18 espaços de excelência mapeados no estudo.
— Assista à apresentação do estudo feita por Lourenço Bustani em entrevista a Christiane Pelajo, no canal Times Brasil – licenciado exclusivo CNBC, um dos maiores grupos de mídia do planeta, presente em mais de 80 países e assistido diariamente por meio bilhão de pessoas.
Todos os textos de Vera Moreira estão AQUI.
Foto de Capa: Imagem do estudo “O Brasil que o Brasil quer ser”