Suponho que a maioria dos brasileiros já tenha visto uma imagem do Eixo Monumental de Brasília. Nela se vê os ministérios enfileirados e que terminam nas torres do Congresso Nacional. Não sei se alguém reparou ou tomou consciência de que nenhum dos edifícios – eu disse nenhum – tem janelas para fora, voltadas para o tal eixo. Nenhum gabinete de deputado ou senador pode olhar para o público que eventualmente se acumule nos gramados em dia de comemoração ou manifestação. Nenhum funcionário dos ministérios, ou o próprio ministro, tem como olhar diretamente para o eixo. Estranho, não?
Nada de cartazes, faixas, abanos ou qualquer outro tipo de expressão que possa humanizar esses edifícios. Não. Paredes cegas como sentinelas perfiladas. Compare, entre tantas outras, com a Av. de Mayo, eixo equivalente de Buenos Aires. A diferença já começa pelo nome. Ninguém a chama de eixo, apesar de sê-lo. É, antes de mais nada, uma avenida. Ela liga o Congresso à Casa Rosada, morada do presidente argentino. Está repleta de moradias, hotéis, bares, restaurantes e comércio. Pessoas que frequentam o centro da cidade podem cruzar ou encontrar políticos num café, loja, cabeleireiro e assim por diante. Manifestações políticas, quando acontecem, literalmente sobem pelas paredes da avenida. Bonito de se ver.
Em Brasília, não, os edifícios não participam. Se apresentam aos cidadãos de forma impassível, como a guarda do rei da Inglaterra. Neutros, presentes ausentes. Não sei o que se passava nas cabeças de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa (esse último considero o maior pensador da arquitetura e do urbanismo dos últimos 100 anos) para projetarem um lugar tão vazio de política em seu sentido de interação com a cidadania. Ainda mais Niemeyer, que tinha a política em alta conta e sonhava com uma revolução que transformasse o mundo em um lugar de igualdade, de ausência de classes. Não que, no desenho desse eixo, não se tenha pensado em política. Há um púlpito para discursos às massas em frente ao Palácio do Planalto do outro lado do Congresso (na sua frente ou fundos? Não dá para saber). Mas ele não tem a força de uma janela palaciana. É insípido, estéril. Não são as massas que chamam seu líder, é o contrário que se dá. O povo chega ali, quando chega, como se estivesse indo a um show previamente marcado.
Mas confesso que a ideia dessa coluna não nasceu dessas observações. Ela vem de uma má impressão antiga que alguns edifícios de São Paulo me causam desde meu tempo de estudante. Ao contar para minha filha Luísa sobre o que eu estava pensando em escrever, ouvi dela: “Como os de Brasília?” Sim! Na hora, me dei conta de que nunca tinha prestado atenção nesse detalhe e na repercussão deste gesto aparentemente banal, formal, dos arquitetos de Brasília.
Em São Paulo, diria que são um produto dos anos 60 e 70. Os primeiros, em sua maioria, eram revestidos com pastilhas, depois surgiram os de concreto à vista. São prédios que têm uma empena cega para a calçada e janelas só para as laterais. Elas abrem para os lindeiros, separados pelo recuo obrigatório.
São imóveis com ótima arquitetura, bons para se morar e bonitos de se ver. Os térreos das residências têm pilotis e jardins exuberantes. Os estacionamentos ficam no subsolo. Eles estão dentro de uma lógica do urbanismo moderno que defendia uma cidade sem muros, sem propriedade do solo que não fosse além da projeção do edifício no terreno, sem a rua tradicional da maioria das nossas cidades — exatamente como acontece no Plano Piloto de Brasília. Diga-se de passagem, fora do eixo monumental, nas superquadras, esses prédios funcionam muito bem. O resultado é agradável, as empenas cegas de que falo aqui não têm relevância, mal são percebidas. São adequadas ao ambiente.
O problema maior, a meu ver, se deu numa cidade tradicional como São Paulo. Lá, o conflito se dá na relação com a rua, com a cidade propriamente dita. Não consigo vê-los sem pensar em antipatia, em desprezo pela calçada, pela vida que se desenrola ali na sua frente. Eles refletem um modo de fazer (ou refazer) a cidade que, infelizmente, foi se tornando o usual no Brasil. Mesmo os que não têm essas empenas cegas na fachada têm altos muros, fazem parte de condomínios fechados, são protegidos por guaritas com vidros escuros e sistemas de portas duplas como nas prisões. Sem falar nas ruas – públicas – que são fechadas por cancelas. Isso tanto em bairros ricos quanto em favelas em que a polícia não entra.
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Não é difícil deduzir que tudo isso é resultado de uma sociedade segregada, que não consegue vencer preconceitos de muitas ordens, principalmente entre ricos e pobres, brancos e pretos. Certamente, os excelentes arquitetos Niemeyer, Lúcio Costa e tantos outros modernistas que sonhavam com um Brasil diferente não poderiam imaginar que seus edifícios pudessem vir a se expressar de maneira inversa ao que sonhavam. Eu mesmo, como já disse, precisei que minha filha me despertasse para a contradição que existe no Eixo Monumental de Brasília. São contradições imprevisíveis que uma arte complexa como a arquitetura pode apresentar. Acho importante prestar atenção nelas como aprendizado. Esses arquitetos, como já comentei aqui, em outras situações inseriram magnificamente seus projetos no espaço público.
A contradição entre desejo e resultado pode ter ocorrido, a meu ver, pela vontade muito grande de construir uma São Paulo totalmente diferente, próxima dos moldes do urbanismo do Movimento Moderno – de que Brasília é a maior expressão. Só que isso nunca aconteceu. O solo nunca virou de uso comum, as divisas de terreno não deixaram de existir. A sociedade, que continuou sectária e classista, agradeceu os talentos desses arquitetos e fez o que fez: segregou cada vez mais o espaço privado do espaço público. Hoje é muito triste ver clientes de lojas e restaurantes – os que podem, evidentemente – saltarem dos seus carros na porta dos estabelecimentos enquanto uma legião de valets manobram seus automóveis. Nada parecido com o que se vê normalmente na Av. de Mayo ou nas ruas de Nova York, por exemplo.
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Fotos: Reprodução Google Maps