Abro o jornal lentamente e finjo ler as notícias com atenção. É impossível; estou de férias. Apenas sinto a areia quente sob meus pés tostados e melados de filtro solar. Estou esperando meu milho verde. As crianças estão por perto e brincam harmoniosamente, quase como uma coreografia. O sol é comedido, o mar cristalino e o vento se movimenta apenas o suficiente para refrescar o ar e me trazer o cheiro do meu próprio cabelo com milho cozido. Agora ele está mergulhando e, em cinco minutos, nos uniremos em uma nova dança familiar. Sim, tá tudo certo, mas, ainda assim, eu não tô legal.
Escuto uma música pulsante que me atrai à pista de dança. Estou com meus amigos mais interessantes, diferentões e militudos. Entre elas, pelo menos duas que são verdadeiramente irmãs. Bebo água entre uma e outra taça de espumante. Tenho uma conta bancária que me permitirá escolher entre um carro novo ou dar uma entrada em um belo AP. Estou bonita e nada no meu visual está desconfortável, me encontrei com um estado de minha beleza absolutamente natural, apesar de um discreto procedimento. Muita gente quer estar perto de mim; desde amigos a possíveis paqueras e parcerias comerciais. Sim, tá tudo certo, mas, ainda assim, eu não tô legal.
Cheguei semana passada. Ainda desfilo pela cidade nova como uma criança que recém aprendeu a ir ao mercado da esquina. Vou escrutinando tudo e todos, pois cada cor é uma novidade cósmica. Faz quarenta minutos que não abro meu celular. Da última vez, foi apenas para me certificar de que estava suficientemente perdido: um prazer que não abro mão quando viajo. Estou tão extasiado que nem me importo com as caras feias para o meu sotaque brasileiro. Os aromas e os sons são melhores do que sonhei. Estou pensando no sentido que tem voltar. Sim, tá tudo certo, mas, ainda assim, eu não tô legal.
Vivo em constante agonia. Só me acalmo quando minha irmã de 6 está perto de mim. Não sei se hoje vai dar para comer até a noite. Com sorte, a mãe consegue catar algo por aí… Se não, ela vai fazer água com açúcar ou farinha. Não sei se ela pode misturar os dois. Sou pequena, tenho uns três anos de idade. Minha mãe é papeleira desde que meu pai está preso. Antes, ela ficava o dia todo bebendo e gritando com a gente. Agora ela fica o dia todo fora. E eu tô aprendendo que isso é pior. De vez em quando, vêm uns adultos e batem na porta. A mãe disse pra minha irmã fazer eu ficar quieta, porque é gente que quer nos levar para um abrigo. A minha irmã me tranca nos fundos até sentir que eles já foram embora. Eu tenho medo deles, mas também tenho medo da minha mãe, que amo tanto. Eu ainda não tenho ideia do quanto está tudo errado, de como eu estou passando mal. Quando eu crescer, se tudo isso passar, eu vou saber que esse mal-estar estava em outras cabeças ocupadas em não saber nada disso que me acomete. Tá certo?
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