Os 60 anos do golpe militar e a morte de Ziraldo trouxeram de novo à tona instâncias de atentados à liberdade de expressão e criação – na literatura, nas artes, no cinema e na MPB – praticados pela ditadura militar, particularmente após a decretação do AI-5 em dezembro de 1968. Uma delas, que beira o surreal, foi a denúncia de um agente da Censura de que o Samba do Arnesto, de Adoniram Barbosa, seria uma provocação contra o Presidente Ernesto Geisel. A música foi gravada em 1953, 21 anos antes de Geisel assumir o poder. Esse bizarro episódio é citado no recém-lançado livro do jornalista gaúcho Márcio Pinheiro O Que Não Tem Censura – Nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística Durante a Ditadura Militar (L&PM, 224 páginas), um relato detalhado sobre a perseguição implacável dos censores ao seu alvo predileto, um dos maiores compositores e intérpretes da MPB. O autor, nascido em 1967, que já havia demonstrado seus dotes de pesquisador em Rato de Redação – Sig e a História do Pasquim aprofunda agora sua crítica ao regime totalitário que, recorrendo à censura, tortura e até mesmo ao assassinato, oprimiu a sociedade brasileira durante 21 anos.
O primeiro choque ocorreu no início da carreira de Chico, um mês antes do sucesso de A Banda no festival da TV Record. Sua composição, Tamandaré, do show Meu Refrão, foi proibida por desrespeitar o patrono da Marinha, o marquês de Tamandaré. Chico reagiu, lembra Márcio Pinheiro, alegando: “A música não ofende a ninguém, porque ofensiva ao Almirante é sua efígie na insignificante nota de um cruzeiro”. Para ele, sua composição contava a história de ‘um Zé qualquer, sem samba, sem dinheiro’, que encontra no chão uma nota de um cruzeiro e, diante do seu mísero valor, resolve perguntar ao Almirante: ‘Pois é, Tamandaré/ A maré não tá boa/ Vai virar a canoa/ E este mar não dá pé, Tamandaré”.
Tamandaré foi peixe pequeno para o que viria a seguir: “Na noite de 18 de julho de 1968, o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, foi invadido por integrantes do CCC (Comando de Caça ao Comunismo, organização paramilitar brasileira de extrema-direita integrada por estudantes universitários que recebiam treinamento do Exército brasileiro). Os invasores agrediram os artistas e destruíram cenários e roupas do musical Roda viva. Revoltado, Chico Buarque se declarava frustrado por ter participado de uma comissão que foi ao ministro da Justiça e dele ouviu a promessa de que a Censura não mais incomodaria os artistas. Agora, tudo piorara. A censura não apenas continuava presente, como os artistas se sentiam ameaçados por grupos radicais. Para Chico, houve um deliberado ‘desleixo das autoridades policiais: elas foram advertidas de que estávamos sendo ameaçados e ninguém deu bola. Isso revela até uma certa cumplicidade…’”
Com o AI-5, decretado na sexta-feira 13 de dezembro de 1968, o totalitarismo absoluto cobriu os agentes da repressão com o manto da impunidade. Acabava a fase light da ditadura e começavam os Anos de Chumbo, que se estenderiam até o assassinato de Vladimir Herzog nos porões do DOI-CODI paulistano em 1975. Apenas duas semanas depois do AI-5, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram submetidos a uma agressão que chegava aos umbrais da tortura. Conta Márcio Pinheiro, sobre o show de Caetano na boate Sucata, no Rio de Janeiro, com Gal Costa e Gil como artistas convidados, que, acicatados por boatos de desrespeito ao Hino Nacional, “oficiais da Academia Militar das Agulhas Negras, na manhã de 27 de dezembro, acordaram à força Caetano e Gil, que dormiam na casa do primeiro no centro de São Paulo. Levados ao Rio, eles tiveram as cabeças raspadas, foram interrogados e ficaram detidos em um quartel. Mesmo sem nenhuma acusação formal, os dois só foram soltos mais de um mês depois, na Quarta-Feira de Cinzas de 1969. Postos em prisão domiciliar em Salvador, não podiam trabalhar e tinham que se apresentar diariamente à Polícia Federal. Seria este o cotidiano de Caetano e Gil pelo menos até julho daquele ano, quando o governo admitiu que a solução para os dois poderia ser o exílio.
Caetano e Gil ainda estavam em seus primeiros dias de confinamento na Bahia quando, no dia 4 de janeiro de 1969, Chico partiu em viagem previamente marcada à Itália e, temendo ser preso na volta, decidiu ficar por lá mesmo. Anos depois, em depoimento ao livro Chico Buarque – Para Todos, de Regina Zappa, ele confessaria que optou por morar na Itália depois de ter sido alertado por Caetano Veloso. Numa carta enviada pelo baiano estava a senha: ‘O tenente amigo mandou dizer para você nem pensar em voltar’. Chico nem pensou. E deu início em Roma a uma nova temporada de sua vida, mais tranquila – porém mais incerta. No período romano, Chico aproximou-se de Garrincha e de Elza Soares (que estavam morando na capital italiana), passava longos períodos jogando botão, integrava o time de futebol de salão comandado pelo cantor Gianni Morandi e dividia feijoadas com Glauber Rocha, que morava por lá na mesma época. De início, Chico acreditou que poderia se manter fazendo shows em Florença, Mônaco, San Remo, mas como não era um músico tão conhecido na Europa e, ainda por cima, cantava num idioma pouco ouvido, ele logo percebeu que os convites para apresentações seriam raros. Sem condições de recusar ofertas, Chico aceitou sair em turnê pela Europa acompanhado de Toquinho, abrindo shows para a diva do jazz Josephine Baker. Morando na Itália com a mulher, Marieta Severo, e a primeira filha, Sílvia, Chico Buarque ficaria um pouco esquecido pela Censura e fora das implicâncias mais diretas”.
Chico trocou de gravadora (da RGE para a Philips), atuou como correspondente do Pasquim em Roma e compôs, entre outras coisas, Samba de Fiumicino, que virou Samba de Orly (o aeroporto de Paris era mais conhecido dos brasileiros do que o de Roma), Samba e Amor, Agora Falando Sério (uma autocrítica à sua imagem de bom moço: “Dou um tiro no cachorro/ Um chute no lirismo/ Um pega no sabiá/ …e corro para não ver a banda passar) e Apesar de Você.
Chico voltou ao Brasil no dia 21 de março de 1970, com a mulher, Marieta Severo, a filha de 11 meses, Sílvia, e a babá Margarita, para “reencontrar nossa gente, ver o Fluminense jogar e tomar muito chopinho gelado”.
A guerrilha urbana iniciou os Anos de Chumbo com ações espetaculares, como os sequestros dos embaixadores dos EUA, da Alemanha e da Suíça, no Rio, e do cônsul do Japão em São Paulo, entre setembro de 1969 e dezembro de 1970. As forças armadas reagiram com uma violência inaudita, assassinando os principais líderes da subversão – Carlos Marighela em São Paulo (1969) e Carlos Lamarca no sertão baiano (1971) – e torturando e matando milhares de militantes. A Censura também afiou suas garras, proibindo no período um pacote de músicas de autores tão díspares como Marcos Valle, Teixeirinha, Paulo Henrique e Xixaro, Antônio Carlos e Jocafi. Chico não podia faltar nessa lista e a canção escolhida foi Apesar de Você, composta durante o autoexílio na Itália.
O livro explica como Chico, inteligente e imaginativo, criou um artifício para driblar a Censura: “Para tentar escapar da nova situação, Chico precisou se disfarçar sob os pseudônimos de Julinho da Adelaide e Leonel Paiva, conseguindo assim aprovar três composições, uma das quais Acorda amor, incluída no LP Sinal Fechado, de 1974. Descoberto o estratagema do compositor, a Censura apertou mais ainda: uma nova exigência determinava que toda letra apresentada teria que ser acompanhada de cópias da carteira de identidade e do CPF do compositor, regra vigente até hoje”.
Uma canção emblemática da resistência ao regime, Cálice, começou a nascer a partir do refrão composto por Gilberto Gil: “Pai, afasta de mim este cálice/ De vinho tinto de sangue”. Com claras referências ao silêncio, ao ficar calado, Cálice amargaria um curto período nos arquivos da Censura. Quando a resposta chegou, deu a lógica: foi vetada. A música era apenas mais um capítulo da intensa perseguição que o compositor vinha sofrendo. Naquela época, para Chico era impossível finalizar um LP. Durante um curto período, das 14 músicas que ele havia submetido à Censura, todas foram cortadas. Como já estavam blindados pela ação da Censura, Chico Buarque e Gilberto Gil não se espantaram com a ação dos censores. O veto a Cálice, acreditava Chico, só podia ser prevenção por parte dos integrantes do órgão. ‘Trata-se de uma composição dentro da linha atual a que nos propusemos: um poema revestido de roupagem musical simples que queria dizer quase literalmente o que diz, somente isso’, justificava-se. ‘Há ironia e denúncia na letra, claro, mas isso sempre houve e haverá na poesia, seja ela escrita ou musicada.”
O Que Não Tem Censura… descreve uma tentativa de conciliação ensaiada pelo ministro da Educação e Cultura do governo Geisel, o paranaense Ney Braga. Em uma conversa com a classe artística, Ney Braga ouviu de um Chico irônico: ‘Um encontro com um ministro, senhor ministro, é raro, mas os encontros com a Censura são tão comuns’. Depois, em conversa com a imprensa, Chico fez questão de frisar que o diálogo que teve com Ney Braga ‘não foi pessoal e nem tratou do problema da censura’. E completou: ‘Esse problema não foi criado por mim e nem posso solucioná-lo. Sou contra a censura e pronto. Se ela aliviar um pouquinho, é bom. Se ela sumir, é o ideal’”.
De repente, o alívio almejado por Chico começou a chegar. Relata Márcio Pinheiro: “Lenta e gradualmente, as comportas da Censura estavam sendo abertas – e o público poderia também ouvir novamente o samba Apesar de você (proibido desde 1970), Cálice e o fado Tanto mar, censurado em 1975. Além dessas, esse novo LP de 1978, sem título, trazia outras composições – como Trocando em Miúdos, letra de Chico para melodia de Francis Hime; Pequeña serenata diurna, do compositor cubano Silvio Rodriguez; e três outras que integravam a trilha sonora de Ópera do malandro: Homenagem ao malandro, Pedaço de mim e O meu amor.
Agonizante em seus últimos meses, o AI-5 teve sua morte anunciada em manchete pelo Jornal do Brasil. Na primeira página do dia 30 de dezembro de 1978, o diário estampava: “Geisel proclama o fim do ciclo autoritário”. Num anúncio feito em cadeia de rádio e de televisão, 52 horas antes da extinção oficial, à meia-noite do último dia do ano, o presidente pedia ao povo equilíbrio e responsabilidade para que o país chegasse ao “término de todo um longo período autoritário de exceção”.
O disco que Chico Buarque começaria a gravar em 1981, ano do Atentado do Riocentro, refletia bem a atmosfera turbulenta do quinto e último mandato da ditadura, exercido pelo general João Baptista Figueiredo. Comenta Márcio Pinheiro: “Depois do caráter morno e de compilação musical de Vida, com Almanaque Chico voltava a montar um repertório com composições inéditas e a fazer o que de melhor sabia: letras que retratavam o cotidiano e, por isso mesmo, fustigavam o governo e os poderosos. Nesse sentido, a canção que melhor representava esse pensamento era Angélica. Composta em parceria com Miltinho, do MPB4, a canção homenageava a memória da estilista Zuzu Angel.”
O capítulo intitulado Quem é essa mulher? relembra como Stuart Angel Jones, o único filho homem de Zuzu, estudante de economia que militava no grupo guerrilheiro MR-8, preso em 14 de abril de 1971, foi torturado e morto nas dependências do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) no aeroporto do Galeão, no Rio. Seu corpo foi ocultado e as autoridades o deram como desaparecido: “A busca de Zuzu pela verdade e pelos culpados só terminaria, também de maneira trágica, na madrugada de 14 de abril de 1976 – exatos cinco anos depois do dia em que Stuart fora preso. O carro dirigido por ela, um Karmann Ghia TC, derrapou na saída do Túnel Dois Irmãos, na Estrada Lagoa–Barra, no Rio; saiu da pista, chocou-se contra a mureta de proteção, capotando e caindo na estrada abaixo. Zuzu morreu instantaneamente. Como sabia que estava sendo vigiada e perseguida, Zuzu, uma semana antes, deixara na casa de Chico um documento em que pedia a divulgação pública caso algo lhe acontecesse. O texto dizia: ‘Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho’”
No parágrafo final, Márcio Pinheiro sintetiza a importância de Chico Buarque: “‘Quantos existem dentro de Chico Buarque?’, perguntava um espantado Julio Cortázar diante da densidade de um criador que antes dos 30 anos já havia alcançado a imortalidade e que, ao se rebelar contra a unanimidade nacional em que se transformara, passou, de maneira paradoxal, a ser mais amplo, atingindo diferentes classes e gerações. Mais completo repórter de seu tempo, Chico Buarque chega aos oitenta anos comprovando que, se nos últimos tempos ele perdeu a capacidade de produzir em linha de montagem, agora tem se revelado um artesão paciente e elaborado. A riqueza poética é a mesma, aperfeiçoada pela sutileza, pelo rigor e pela exigência. O lirismo denso e o estilo elíptico ainda permeiam sua obra. E, se nos anos 1970 ele precisava tergiversar para dizer o que pensava – fossem denúncias políticas ou desilusões amorosas –, Chico Buarque envelhece com a sabedoria de quem sempre soube de tudo aquilo que anda na cabeça, anda nas bocas – e que não é preciso se afobar, porque nada é para já”.
Roberto Muggiati é jornalista, escritor, músico, ex-Veja, ex-diretor da Manchete e membro da Academia Paranaense de Letras.
Foto da Capa: Divulgação
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