A rotina de todo ou toda psicoterapeuta/psicanalista tem essas 3 palavras, ou outras variações destas, na escuta diária em nossos consultórios. Na verdade, são palavras que usamos e escutamos muito, todos nós, em nosso dia a dia. Essa ideia de uma imprevisibilidade sobre as próprias ações e uma cegueira temporária que levaria a cometer atitudes quase sempre não muito saudáveis.
Quando eu vi, falei o que não devia. Quando eu vi, fiz aquilo que sempre faço e já sei que não me favorece. Quando eu vi, troquei. Errei. Mas quando vemos efetivamente bem alguma coisa? Quando é que a gente enxerga antecipadamente? Com sorte, maturidade e – puxando a brasa para o meu assado – um bom processo de análise nas costas, braços e colo, a gente consegue sim enxergar antes do deslize acontecer, do tropeço com cara de azar, da repetição com cara de destino. Essa fala tão popular nos dá a ideia de sermos pegos de surpresa por nossas próprias decisões e percepções da vida e do outro. Uma tentativa vã de tirar o corpo fora quando o corpo está sempre dentro, mesmo que a consciência não. Mas não tarda até que percebamos, no osso, que tudo que pensamos não ter visto volta como um bumerangue e nos atinge na nuca, infalível. Às vezes com consequências catastróficas, outras só com os pequenos incômodos e frustrações banais da neurose nossa de cada dia.
Tem um poema budista que eu amo e uso sempre nas minhas aulas na universidade e que, para mim, retrata com beleza, aparente simplicidade e sensibilidade o funcionamento de uma neurose e o caminho de um processo de análise ou psicoterapia quando bem conduzido. Diz assim:
1.
Ando pela rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Eu caio…
Estou perdido… Sem esperança.
Não é culpa minha.
Leva uma eternidade para encontrar a saída.
2.
Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Mas finjo não vê-lo.
Caio nele de novo.
Não posso acreditar que estou no mesmo lugar.
Mas não é culpa minha.
Ainda assim, leva um tempão para sair.
3.
Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Vejo que ele ali está.
Ainda assim caio… é um hábito.
Meus olhos se abrem.
Sei onde estou.
É minha culpa.
Saio imediatamente.
4.
Ando pela mesma rua.
Há um buraco fundo na calçada.
Dou a volta.
5.
Ando por outra rua.
Andar por outra rua é o supra sumo da transformação. Dar a volta ao detectar o buraco adiante já é muita coisa. Quando eu vi, estava no buraco de novo, é o que mais dizemos. Eu não imaginava que ele estaria ali, pensamos. Porque somos assim, porque somos neuróticos por necessidade, em um determinado grau, para sobrevivermos psiquicamente. Talvez a questão nem seja quando ver, mas o QUANTO ver nesse quando. Enxergar demais cega, se for precoce. Cegar demais derruba, se for prolongado.
Dia desses, num ato dos mais mundanos em minha rotina doméstica, limpava eu a caixa de areia dos meus gatos para retirar os excrementos e deixar a areia limpa para novo uso e pensava que – guardadas as devidas proporções – é um pouco disso que se trata conhecer-se. É preciso saber usar nossas caixas de areia e peneirar o que não serve mais e precisa ser posto fora. E sozinho é sempre mais difícil. Um processo de psicoterapia facilita (embora fácil não seja) a aquisição de uma capacidade própria e singular de analisar a própria vida e a forma com a qual conduzimos nosso “ver” e para que ele seja quando precisarmos ver e não quando já for tarde demais. Logicamente, não é possível enxergar tudo. Nossas lentes andam embaçadas demais, a vida tecnológica está nos fazendo cansar demais a vista. Pensando no poema, os buracos da vida são muitos e vão mudando estrategicamente de lugar. Mas ainda assim, responsabilizar-se pela caminhada é sempre o melhor trajeto.
Foto da Capa: Freepik
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