Para escrever o livro Mulheres Cérebro Coração (Editora Espírito, 2018), passei três anos explorando o universo da ciência. Foram mais de 80 livros lidos, de biologia, medicina, genética, paleontologia, física, etc. Participei de vários congressos de saúde, pesquisei inúmeros sites, li artigos, estudos e entrevistei médicos especialistas, buscando conhecimento sobre o que somos nós, seres humanos. Li também ainda mais sobre filosofia, mitologia e religião, assuntos que já vinham se impondo nos meus estudos por conta da beleza infinita proporcionada por autores como Nietzsche, Spinoza, Joseph Campbell e Santo Agostinho; no momento estou lendo Michel Maffesoli, A nostalgia do sagrado.
Naquela fase, ao terminar Como conhecer Deus, de Deepak Chopra, fui para o sebo Aurora procurar mais alguns títulos do autor e outros que me “chegassem”. Tenho por hábito fluir por horas dentro de livrarias e sebos, navegando pelas prateleiras, esperando que algum livro me alcance, e foi assim que Quem tem ouvidos, um salto do pensamento para o inconcebível, chegou. Do Aurora saí com Vida incondicional do Chopra em mãos e com Quem tem ouvidos na cabeça, pensando na belíssima imagem de capa em P&B com O Pensador vestindo um cocar indígena colorido, o calendário Asteca, as colunas de Roma e a abóbada interna da Igreja, no nome João Batista (o profeta que me inquieta por sua cabeça na bandeja…) e o sobrenome Mezzomo. Como sempre, vou atrás de informação sobre o autor quando não o conheço – já sabendo pela orelha que é um filósofo e engenheiro elétrico e mora em Porto Alegre(!) – e procuro na internet: vejo que trabalha na Secretaria da Fazenda e assisto a uma ótima entrevista sobre tributos. Procuro sua página no Facebook e ali está, realmente, o democrata. Decido comprar o livro e, no outro dia, vou ao sebo Erico Veríssimo, no caminho da reunião-almoço com minha editora na época, Milene Leal, que sempre adoro encontrar. À noite, leio A Prece, de Fernando Pessoa, na página inaugural:
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida, ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância —
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
Leio mais três capítulos e tenho o primeiro sonho, com a Milene, em que ela me diz: “Quando nascermos, veremos que um mundo melhor já brota por aí” e eu fico olhando-a, pensando e respondo: “Acho que sim, Mi, tens razão, esse mundo já está aí e a gente ainda não vê, teremos de nascer para poder ver”. Conto para ela o sonho e digo que a gente anda tão acachapada, tão desiludida e exausta, que só nascendo de novo poderemos ver esse mundo que nos é de direito. E destaco outra imagem importantíssima do sonho, que é o cabelo dela atado em um rabo de cavalo com uma borrachinha amarela, dessas de dinheiro, e eu me detivera a olhar aquela borrachinha…
No almoço, Milene me dissera que cuidar do cabelo era como uma limpeza, uma purificação. Aí está a mitologia do cabelo como força vital, instinto, poderes espirituais, sendo também comparado à relva, o cabelo da Terra, etc. O significado dessa imagem no sonho, portanto, é muito forte: eu vejo a Milene como uma mulher determinada, profissional, justa e extremamente sensível, e o cabelo dela no sonho significa que estamos amarradas na violência da roda viva do dinheiro, da energia que o sistema suga de nosso cérebro, de nossa mente. Precisamos segurar a vida “funcionando”, mas o sistema, o dinheiro, não nos dá a segurança necessária, nem realização e quanto menos leveza.
Então, o mais belo desse sonho foi mostrar que, ainda assim, podemos nascer e ver, que morremos e nascemos todos os dias e que, por mais que nos tolham o direito de nascer e ver, nós vamos nascer e ver um mundo melhor, a nossa alma, nas conexões que afinal fazemos com almas irmãs e outras criaturas da natureza, o universo e o eterno. Esse sonho me mostrou que, por mais que eu me sinta às vezes meio deprimida, esse sentimento nunca alcançará a doença em mim porque o inconsciente está alerta, apto a captar uma mensagem de redenção, de esperança, aquela esperança que o filósofo coreano Byung-Chul Han descreve com verdadeira precisão no seu livro O Espírito da esperança, Contra a sociedade do medo.
“A ‘vida em si’, que pode prescindir de qualquer ‘ideia’, qualquer ‘sentido’, é mesmo concebível ou desejável? A liberdade, sem a qual a ação no sentido empático não seria concebível, já é uma ideia que dá sentido. Sem ideia, sem horizonte de sentido, a vida definha em mera sobrevivência ou, como hoje, em imanência do consumo. Consumidores não têm esperança. Eles apenas têm desejos ou necessidades e também não precisam de futuro. Onde o consumo se totaliza, o tempo se degenera em permanente presença da necessidade e da satisfação. A esperança não faz parte do vocabulário capitalista. (…) A dimensão ativa da esperança, que nos impulsiona para o novo, é completamente desprezada. (…) A depressão é diametralmente oposta à esperança como paixão pelo novo. A esperança é o salto, o elã, o ímpeto que nos liberta da depressão, do futuro esgotado. (…) Ter esperança significa ‘dar crédito à realidade’, crer nela, de modo a torná-la prenhe de futuro. A esperança representa uma íntima oração da alma, uma paixão que desperta diante da negatividade do desespero”. Recomendo fortemente esse livro de Han – na verdade, todos os seus livros são inspiradores. Nosso colega Jorge Barcellos escreveu na semana passada uma bela coluna, aqui na Sler, com um roteiro de leitura para quem quer conhecer o filósofo. É como disse Jorge Luiz Borges: os livros são extensões da memória e da imaginação, portanto, por meio deles, armazenam-se informações de uma pessoa na mente de outra, o que nos impulsiona muito além da matéria.
Na próxima semana, contarei outros sonhos que tive enquanto lia Quem tem ouvidos.
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Foto de Capa: Montagem digital VM com imagens Pixabay