Semana passada falei do primeiro sonho que tive quando li ‘Quem tem ouvidos’, de João Batista Mezzomo. Depois de curtir algumas postagens no Facebook do autor, recebi a solicitação de amizade e escrevi para contar que estava lendo seu livro. Então, tive outro sonho: “Estou com medo de me perder no FB de Mezzomo, onde não conheço as pessoas, o novo ambiente me faz sentir fora da minha realidade, da razão, e isso me deixa apreensiva; digo ao meu filho que, se eu morrer, ele poderá me encontrar em algum buraco negro do Universo, que não precisa ficar nervoso nem ter medo, pois estará tudo bem. Mas daí penso que existe um amigo em comum ali naquele FB e parece ser meio índio, além de também ser jornalista, e então penso que posso apostar que não me perderei.” Acordo na madrugada deste sonho e lembro de meus trabalhos voluntários na juventude: em 1980, era colaboradora da Associação Nacional de Apoio ao Índio e fui a uma reserva indígena no Rio Grande do Sul e, na adolescência, participava de um grupo de assistência a um abrigo para órfãos de leprosos. Sigo lendo: “Mas deveríamos ver também que estas coisas que estão fora de nossa consciência são apenas marcas de uma viagem que fizemos desde o abstrato até o concreto. E se o sonho noturno é manifestação destes aspectos ocultos de nossa consciência, é porque quando sonhamos voltamos em certo sentido ao abstrato, onde ficaram gravadas estas marcas” (página 403).
O sonho revela o medo dos pântanos do não-ser, mas mostra também uma confiança em meu íntimo. Viagens ao abstrato precisam ser muito bem elaboradas, empreendendo energia criativa para resgatar vivências e memórias, sem temer sinais, percepções, emoções. Eu busco imagens importantes de minha trajetória e identifico duas das mais fortes que desenvolvi na juventude, quando eu queria cursar Biologia ou Paleontologia: sair da água até a terra e o desenho de um peixe que pula para fora do aquário. Novas percepções passaram a jorrar com muita força e resultaram na trilogia ‘O Gênio Poético – Água, O Todo e Amor’, que escrevi a partir de 2019. Compreender ciência nos meus estudos para escrever ‘Mulheres Cérebro Coração’ (Editora Espírito, 2018) já estava sendo um processo maravilhoso, deslumbrante, mas ficou ainda mais luminoso com esse novo olhar, essa nova perspectiva resgatada de minhas experiências naquele passado longínquo.
Na página 405 de ‘Quem tem ouvidos’, chego ao sonho do coletivo: “Ainda sobre os sonhos, e sobre a natureza do próprio ente, podemos vê-lo como algo que vem do abstrato e para ele volta, ao final. Nossa vida mesma, nessa perspectiva, é um pulsar do abstrato que vem para o concreto e depois se recolhe novamente para o abstrato. E se ela é assim como um todo, ela também o é no dia a dia: nós, como abstratos que somos em essência, todos os dias acordamos para o concreto, e à noite dormimos para retornar ao abstrato, fonte de tudo. Um dia, porém, de tanto o ser humano acordar para o concreto – ou seja, de tanto viver –, possivelmente acabará também acordando para o abstrato. Neste caso, será o início do sonhar coletivo.”
E daí o mais incrível, porque não penso em nada, é madrugada e simplesmente levanto da cama para procurar o caderno com meus textos de adolescente e releio as duas histórias. A primeira, uma novelinha sobre intuição/superstição, e a segunda, um conto tipo fluxo de consciência: Sou uma águia que atravessa o oceano, solitária, em busca de conhecimento, preferindo a morte à ignorância e, no final, tentando alcançar a face de Deus que vejo nas nuvens, exausta, perco altitude e sou abocanhada por um leão, caio ao chão e, antes de morrer, olho para o céu e vejo um bando de aves voando em formação e sorrio, feliz. Eu achava esse final triste, sempre ficava intrigada com o porquê de eu ter escrito um morrer na busca do conhecimento, mas daí entendo que o conteúdo quer dizer que mesmo a busca solitária também contribui para o coletivo, pois o que empreendemos em nome do conhecimento, da sabedoria, irradia na espécie e no Todo. É por isso que morro feliz vendo o bando de aves no céu, esse símbolo tão forte do coletivo – fico emocionada com mais essa nova percepção e isso me mostra que quero “lutar” e preciso descobrir como vencer o frio covarde.
Trecho de um conto que escrevi em 2008: “Seguirei pelo caminho de pequenos campanários e imagens sacras, como uma Santiago de Compostela, até a capelinha de basalto no alto do morrinho. Preciso rezar um pedido para vencer o frio covarde e narrar a sucata dos mísseis usada como vaso de flores sobre a mesa de jantar: dor e resistência de quem sobrevive na certeza de que não viemos ao mundo para matar.”
Vou voltar para a reportagem? Para o trabalho voluntário? Vou fazer campanha política? Continuar escrevendo livros? Vou investir no universo virtual?
Tinha tido outro sonho, com dois 4, não 44, mas dois 4 que também remetiam aos 4 do livro, dividido em 4 etapas evolutivas: Matéria inerte; O ser vivo não consciente; A consciência ou os antecedentes da razão; O advento da razão. Estava na página 348 e fiquei desenhando na margem dois 4s para ver que símbolo obtinha e chego a um H, penso ser um H mudo que poderia compor no sobrenome Mezzomo, pois não afeta o som e atribui um significado de Mezzo + Homo, os meios para conhecer o humano. Mas quando estou nas últimas páginas, no dia 08.08, percebo que os dois 4 são para somar: 08 de agosto, dia do aniversário do meu pai (morto aos 84 anos, um engenheiro que amava trens e flertava com discos voadores), e que o oito deitado é o infinito, e que a capa do meu caderno de adolescente é o Monte Fuji (Fuji na língua da tribo indígena Ainu significa “vida eterna”).
Chego à página 510: “(…) quando ouvimos o mundo, nós o ouvimos como um todo. O ato de ouvir o mundo é então uma forma de fazer parar o pensamento, de fazer parar o próprio julgamento do mundo, de fazer parar o próprio mundo, que nos consome. (…) possivelmente algo bate à porta do aposento chamado ser humano, talvez seja o inusitado. Como uma legião de tudo o que já existiu, ele martela no peito e na mente do ser humano, e sussurra em nossos ouvidos ainda surdos. Um ponto de vista que nos tomou, solidificou o mundo e nos tornou cegos para a verdadeira realidade essencial. Contudo, com o martelo que move o mundo e a nós mesmos, ele bate insistentemente. Pelo presente, pelo passado e pelo futuro, ele bate. Pelas dores, pelas paixões e utopias perdidas, por todas as vidas vividas, ele bate. Pelos amigos e inimigos, ele bate. Pelo céu e pela terra, ele bate. E não demonstra intenção de parar. Pois ele quer que reabramos a porta do não-ser. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.
Quatro dias depois de ler este trecho, sonho com uma aurora boreal em que uma comprida e belíssima lança de dois lados, simétrica, ornamentada com imagens que parecem astecas em amarelo e dourado, atravessa o céu devagar e, então, aparece o enorme martelo, todo de partículas, como se fosse gasoso, num movimento de bater e bater, solto no céu. Quem tem ouvidos (Editora BesouroBox, 2010) é um livro belíssimo, recomendo muito.
Todos os textos de Vera Moreira estão AQUI.
Foto de capa: Montagem digital da Autora com imagens Pixabay