No último dia 26 de abril, participei de uma reunião na Vila Planetário, na qual foi decidido que o 2º Congresso Popular de Educação para a Cidadania (CPEC) será realizado em 2023. Na lista de 25 participantes desta reunião, encontramos lideranças comunitárias, professores, servidores públicos, estudantes, profissionais liberais, artistas e empresários. De largada, não há dúvida de que a grande marca deste evento é a diversidade. Apesar de se falar muito sobre o tema, se olharmos para o lado veremos que ela ainda está muito no discurso, menos nas práticas e organizações. Para nós do Coletivo POA Inquieta e Ponta Cidadania (organizadores do CPEC), a diversidade é um valor central do projeto de cidade; é a nossa motivação e o motor da nossa inovação.
Portanto, seguirei a trilha da diversidade para contar um pouco da experiência do CPEC e porque tudo nele foi diverso e diferente. Um congresso sem conferencistas famosos, mas com 700 pessoas, grande parte moradoras da Vila Planetário, Morro da Cruz e Bom Jesus, portadoras de muitos saberes e legitimadas para ocupar o “palco”. A tarefa central do CPEC foi escutar estas vozes periféricas que trazem o saber de quem sofre as dores mais profundas da insuficiência das políticas públicas e de oportunidades. Queríamos escutar, sermos mutuamente afetados (mesma raiz da palavra “afeto”) e, em diálogo de saberes, construirmos respostas para três perguntas: qual a cidade que temos? Qual a cidade que queremos? Como chegaremos lá?
O caminho metodológico para esta construção democrática de conhecimento não poderia ser outro: as rodas de conversa. Em dois dias e meio foram realizadas 25 rodas de conversa. No CPEC, ao invés do microfone, tínhamos o “totem da fala”, um objeto que passava de mão, incentivando todos a se expressarem. Muitos tomaram a palavra, já familiarizados com o ato em função do seu protagonismo nas lutas sociais que empreendem. Outros, em meio clima de acolhimento do CPEC, se aventuraram a soltar a voz e se surpreenderam com o conhecimento que estava lá adormecido e que jorrava. Mas, por vezes, o totem encontrava uma mão meio trêmula e que queria se livrar dele rapidamente como se fosse brasa. Também não faltaram olhares para baixo, envergonhados; corpos curvados, como se quisessem buscar um esconderijo embaixo da cadeira.
A este respeito, ainda esta semana num bate-papo sobre o CPEC com o líder comunitário Jorge Menezes, ele me disse: “Quando sentamos numa roda e as pessoas se apresentam, as pessoas da comunidade se retraem porque o que elas têm é a vivência”. Para alguns especialistas – exaustos de constatarem a limitação dos modelos tecnicistas – é justamente este saber prático e popular oriundo da vivência que falta no debate público. Para as comunidades, o sentimento é de que seu saber não tem valor porque eles não têm um diploma. Ou não tinham. Foi o próprio Jorge, prosseguindo no bate-papo, que me contou que, inspirados pela experiência vivida no CPEC, a comunidade se mobilizou com a universidade e criaram um curso. Hoje eles têm um diploma de líderes sociais.
Esta história, dentre tantas outras que aconteceram antes, durante ou depois do 1º CPEC, chamam a nossa atenção para a profundidade dos processos que envolvem a articulação entre participação e diversidade. O que realmente faz a diferença “é invisível aos olhos” ou permanece invisibilizado até compreendermos este iceberg da participação em contexto de diversidade. A roda de conversa é a ponta do iceberg. Ela é um instrumento. Não basta nos sentarmos em roda, supondo que nossa posição física igualitária eliminará as desigualdades. A parte maior advém do lento e também prazeroso processo de construção de vínculos de afeto e de confiança. No caso do CPEC, eles foram construídos ao longo de um ano de cocriação e de organização do evento.
Claro que as rodas de conversa também foram o instrumento dos três eventos de pré-congresso, mas aqui entra outro elemento fundamental para esta experiência transformadora: o trabalho com o corpo e com a emoção. Esta dupla corpo-emoção costuma andar bem esquecida, quando não neutralizada nos processos de conhecimento e de planejamento. Foi através do relaxamento no começo das rodas de conversa e de técnicas artísticas que conseguimos dar uma trégua nas nossas funções racionais que nunca param de analisar, ponderar e julgar e deixamos o saber que está sob a pele, oriundo da alegria e também da opressão, aflorarem em conjunto com a criatividade e a liberdade. É quando nos tornamos mais presentes em nós mesmos que também nos conectamos com o outro. Para além das eventuais estranhezas aparentes, nos sentimos mais próximos e tão semelhantes em nossa humanidade.
À esta altura, talvez você já esteja com vontade de viver esta experiência inovadora e transformadora de educação para a cidadania. Neste ano, o Congresso será novamente organizado de forma totalmente voluntária, a partir do que cada um pode oferecer, seja recursos financeiros, materiais ou botar a mão na massa. Toda a contribuição é bem-vinda, mas o convite que realmente queremos deixar é que você participe desta experiência transformadora. Pessoas que se transformam, transformam a realidade.
*Adriane Vieira Ferrarini é professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Unisinos. Articuladora do Coletivo Poa Inquieta
Foto da Capa: Silvia Marcuzzo