Nos últimos 30 anos, com a escalada da Web, a transformação no mundo foi tão radical que é como se vivêssemos hoje em um novo planeta, “igualzinho ao anterior na aparência, mas que saiu de um modo vertical para um modo horizontal, com uma mudança absolutamente radical de todos os parâmetros de 2.800 anos, desde as formas de nascer e morrer até nossas relações em família, comunidade, trabalho, com o nosso próprio corpo, as tecnologias, os avanços científicos, etc.”, definiu o psicanalista Jorge Forbes, com quem fiz um curso na FAAP de São Paulo, ao criar o conceito de Terra Dois.
Percebemos coisas que já estão obsoletas, ou em franca decadência, mas custamos a assimilar a necessidade de seguir em frente. Temos uma dificuldade enorme em descolar de nossa origem primata, de aversão ao risco devido a um senso de escassez ilusório – afinal, o planeta é e sempre foi riquíssimo – e de “certezas” implantadas em nossas mentes por um sistema cartesiano, que não pode mais nos orientar nem mesmo na estrutura que serve ao Grande Sistema. Nosso tempo é outro. Tudo, absolutamente tudo mudou.
No universo do trabalho, essas mudanças estão afetando profundamente os modelos de gestão. As consultorias se multiplicam, buscando orientar empresas que não conseguem se adaptar às mudanças e correm, desorientadas e sem convicção, para implantar práticas como o ESG ou incorporar diversidade, assim como formas de lidar com suas equipes, em especial para reter talentos nos seus quadros. Mas se a resistência à mudança persiste, talvez as empresas devessem começar a trabalhar nas perguntas, de forma a entender porque as novas questões incomodam ou não são compreendidas. Por que um funcionário talentoso se demite sem dar qualquer justificativa? Por que é difícil incorporar ESG? Por que a diversidade incomoda? Por que perseguir o lucro imediato não é mais o suficiente? O que há na cultura da empresa que faz dos novos conceitos uma incógnita?
O que era um mundo vertical, de hierarquias muito definidas nas empresas, valores pré-estabelecidos, não só aceitos como almejados, como a ascensão de cargo, planos de carreira, conquistas galgadas passo a passo, se transformaram até mesmo pela própria ruptura do emprego formal. O neoliberalismo levou as empresas a acreditarem que criar postos de trabalho sem vínculo empregatício seria muito vantajoso: reduziria custos, agilizaria processos de demissões, etc. O resultado se revelou não ser bem o esperado. Os trabalhadores, ao se verem desassistidos em direitos trabalhistas, foram se adaptando e perceberam que poderiam optar pela fluidez. Não há mais motivo para se prender a uma organização, enquanto há tantas mundo afora onde experimentar seus talentos – inclusive o trabalho remoto, que se tornou oficial na pandemia, contribui muito neste sentido. Os verdadeiros talentos já sabem do seu valor e sabem que podem buscar empresas com as quais se identifiquem, numa relação verdadeira e que não é mais apenas de trabalho formal.
Há empresas que estão lidando com esse desafio oferecendo promoções, benefícios, prêmios, recompensas aos colaboradores bem sucedidos, o que se choca com a própria origem do desafio, pois os talentos não são muito sensíveis à ideia de que a empresa saiba o que eles querem. Há iniciativas também de melhorar o aspecto físico do ambiente, com grafites nas paredes, murais criativos, etc. Expressão artística é sempre bom, mas ao invés de um bonito mural pronto, talvez um mural de construção coletiva e contínua fizesse mais sentido, contribuindo, inclusive, para a compreensão dos valores e desejos da equipe.
Uma organização é feita de pessoas, é um organismo vivo e dinâmico. Talvez o que se queira hoje no mundo do trabalho é a real compreensão de que o trabalho vai se desenhando no dia a dia, no movimento das pessoas, na troca, na experiência de momentos e situações. E todos são importantes. Do pessoal da limpeza ao CEO, cada um tem importância crucial no desempenho do todo; na valorização de cada um e na troca entre os colaboradores se constrói a organização. Não é preciso estar sempre aspirando subir um degrau. Se cada um for valorizado e compreendido, respeitado e bem remunerado no seu papel, as competências se desenvolvem sem que seja necessário subir um degrau, cobiçar o lugar do outro.
Se eu transmitir aos meus homens o amor da navegação no mar, e essa dimensão que eles passam a ter no coração os fizer assim tender para o mar, em breve os verás diversificarem-se segundo as qualidades particulares de cada um. Aquele tecerá o pano, o outro deitará abaixo a árvore da floresta, ao clarão da sua machada. Outro ainda forjará rebites e haverá quem observe as estrelas para aprender a governar. E, todavia, não serão mais do que um. (Saint-Exupéry)
Se a empresa consegue transmitir o amor ao propósito do negócio para os seus colaboradores – e sem esse amor hoje não se vai longe, pois os colaboradores, especialmente os da geração Z, e clientes valorizam cada vez mais o comprometimento com a Vida –, eles poderão se identificar e direcionar suas habilidades dentro da empresa, sentindo-se responsáveis, cada qual fazendo a sua parte, cientes de que é fundamental em si própria, mas também para o sucesso da parte do outro, sendo o conjunto não mais que um, comunidade. O lucro deixa de ser a questão imediata do negócio e passa a ser o lucro que contempla o coletivo, a sociedade, gerando mais resultados inclusive para a própria empresa.
Usando ainda a metáfora do amor pelo mar desenvolvida por Exupéry, se o amor comanda as ações na empresa, revolucionamos as relações de trabalho. Gosto das cantigas dos forjadores de rebites e dos serradores de tábuas porque eles celebram, não a provisão arrecadada, vazia portanto, mas a ascensão para o navio. E, uma vez aparelhado o navio, depois de ele já ter adquirido o sentido de viagem, quero ouvir os meus marinheiros cantarem a princípio, não as maravilhas da ilha, mas os perigos do cerco pelo mar. Fico com a certeza de que hão de sair vitoriosos. Ver/enxergar os processos amorosamente permite agir em conjunto e solucionar problemas com mais rapidez e eficiência, tirando o máximo de prazer de cada etapa do processo, usufruindo da jornada integralmente.
É a questão do humano que está em pauta hoje, numa escala de valor que vai sendo mais e mais compreendida. É uma busca de sentido o que nos move. A ética é fundamental. As empresas que estão criando cultura consciente já estão colhendo os resultados de significado e de lucro coletivo, que engloba seus integrantes, sua rede de colaboradores, clientes e mesmo o planeta. Para ilustrar, cito o exemplo dos produtores de vinhos naturais, que estão ganhando terreno no mundo todo, gerando movimentos de grande impacto para a sociedade – aqui em Porto Alegre destaco a feira Vinho no Vila Flores e a Casa Vivá. O amor dos vitivinicultores pela videira e seus processos, sem o uso de fertilizantes, agrotóxicos e aditivos químicos, faz com que a comercialização e divulgação de seus rótulos promova também uma cultura de respeito ao ambiente e ao nosso corpo. É toda uma cultura de resgate ancestral com aporte tecnológico que revoluciona as formas de produção. Falaremos mais de todo esse belíssimo movimento em novas colunas.
Foto da Capa: Stock Snap