No Brasil, pela falta de normas específicas claras, por motivos religiosos, por diversos preconceitos e pelo medo da responsabilidade civil e criminal, muitas vezes o desejo de um paciente terminal de não receber um determinado tratamento médico não é respeitado pelos seus familiares. Para alguns, isso seria eutanásia, para outros, isso seria ortotanásia, e para outros, seria até mesmo um homicídio.
A este passo, vale diferenciar o que é eutanásia, morte assistida e ortotanásia. Gosto muito das definições de Rodrigo da Cunha Pereira, realizadas no Dicionário de Direito de Famílias e Sucessões. Para ele, eutanásia “em sentido genérico significa a boa morte, morte sem sofrimento. É o método por meio do qual se abrevia o sofrimento de um doente de cura improvável, especialmente quando acompanhada de uma dor implacável. Quem deseja ser eutanasiado, seja por manifestação em Diretiva Antecipada de Vontade (testamento vital), de própria voz, ou outra manifestação de vontade qualquer, além de querer aplacar o seu sofrimento com a morte, quer também o reconhecimento público e oficial de que aquele seu sofrimento é insuportável”.
No Brasil, não é permitido que sejam realizadas a eutanásia ou a morte assistida, embora sejam possíveis em outros países, como, por exemplo, a Suíça, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Em 2024, teve muita repercussão a morte assistida do compositor, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Antônio Cícero, que realizou o procedimento de “morte assistida” em Zurique. A morte assistida é muito parecida com a eutanásia, a diferença é que na morte assistida o próprio paciente executa o ato que irá levá-lo à morte, como, por exemplo, aplica nele mesmo uma substância química, mas auxiliado por um terceiro, pode-se dizer que é um suicídio assistido. Já na eutanásia, ocorre quando um terceiro, a pedido do paciente, comete o ato que o levará a morte.
A ortotanásia, segundo Rodrigo da Cunha Pereira, no livro acima mencionado, “é o procedimento pelo qual se opta por não submeter o paciente terminal de doença de cura improvável a tratamentos invasivos para o prolongamento da sua vida que poderiam lhe causar sofrimentos desnecessários, especialmente quando acompanhado de uma dor implacável. Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico deve levar em conta as circunstâncias e, quando houver a vontade do paciente manifestada em suas diretivas antecipadas de vontade (Art. 2º, Resolução – CFM nº 1992/12). Tais diretivas, também conhecidas como testamento vital, devem prevalecer sobre qualquer outro parecer médico, inclusive sobre os desejos dos familiares (Art. 2, § 3º, Resolução nº 1.995/12). Esse procedimento encontra respaldo nos princípios constitucionais da pessoa humana, liberdade e autonomia da vontade de pessoas que não querem passar por sofrimento desnecessário, resultando no direito à “morte digna”. Cumpre salientar que a ortotanásia se contrapõe à distanásia, que ocorre quando a morte é prolongada pelos médicos, a revelia da vontade do paciente.
No Brasil, não há legislação específica para o testamento vital. Existem apenas resoluções do Conselho Federal de Medicina. São elas, a Resolução nº 1.995 e a Resolução nº 2.232/2019.
A Resolução nº 1.995/2012 do CFM define diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer ou não receber quando estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.
Outrossim, ela define que, nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.
A Resolução nº 1.995/2012 também prevê que, caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico. Todavia, o médico poderá deixar de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos do Código de Ética Médica.
As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares, e o médico deverá registrar, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhe foram diretamente comunicadas pelo paciente.
Caso não sejam conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.
O testamento vital, para que a pessoa manifeste sua recusa em receber determinados tratamentos em caso de doenças graves que a impeçam de manifestar livremente a vontade, que não quer ter sua vida prolongada artificialmente ou por tratamentos invasivos, pode ser realizado em qualquer cartório de notas do Brasil.
Infelizmente, muitas vezes os médicos não têm acesso a essa informação e o paciente é submetido a tratamentos que somente prolongarão a sua vida às custas do seu sofrimento. Imagine a angústia e sofrimento de uma pessoa lúcida que, ciente de que está morrendo, não quer uma sonda entrando pela goela para alimentá-la, e que queira poder falar nos seus últimos dias com os seus entes queridos, ter de se submeter a algo assim, para prolongar em dias ou horas uma vida de sofrimento apenas.
Algumas pessoas têm tanto medo de que seus testamentos vitais não sejam respeitados que chegam a entrar com ações para que seja declarado pelo judiciário o seu biodireito à ortotanásia.
Veja-se a seguinte jurisprudência, reproduzida no site do JusBrasil.
“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DE TESTAMENTO VITAL (DIRETIVA ANTECIPADA DE VONTADE). BIODIREITO À ORTOTANÁSIA. MANIFESTAÇÃO MERAMENTE DECLARATÓRIA. COMPETÊNCIA DA VARA DE REGISTROS PÚBLICOS (INCISO III DO ARTIGO 31 DA LEI 11.697/2008). NÃO CONFIGURAÇÃO. COMPETÊNCIA RESIDUAL DA VARA CÍVEL. INCIDÊNCIA DO ARTIGO 25 DA LEI Nº 11.697/2008. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO. 1. Na ação de testamento vital ajuizada, a Autora busca que seja declarado, pelo Poder Judiciário, o seu direito à ortotanásia, a fim de que, caso venham a submetê-la a situação artificial de prolongamento da vida por meio de intervenção médica, estejam ela e sua representante nomeada munidas de pronunciamento jurisdicional favorável à morte natural. Em outras palavras, trata-se de manifestação prévia, diretiva de vontade, que tem o condão de declarar o seu direito a não ser submetida a tratamento médico futuro em situação em que ela estiver incapacitada de se manifestar contrariamente à intervenção. 2. A possibilidade de que sejam realizadas diretivas antecipadas de vontade dos pacientes traz difíceis questões a serem enfrentadas tanto pelo Poder Judiciário como pela ética médica. Do ponto de vista médico, a possibilidade de realização de diretivas antecipadas de vontade dos pacientes tem regulamentação na Resolução n.º 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina. 3. – Como a demanda originária tem natureza meramente declaratória, sem qualquer relação com tentativa já manifestada de formalização do ato de vontade nos registros públicos e notariais, ou seja, em que se configure questão contenciosa e administrativa que se refira diretamente a atos de registros públicos e notariais em si mesmos (artigo 31, II, da Lei n.º 11.697/2008), a competência para processamento e julgamento do feito é da Vara Cível, tendo em vista o critério residual (artigo 25 da Lei n.º 11.697/2008). Conflito de competência admitido e acolhido para o fim de declarar competente o Juízo Suscitado.”
Vale transcrever importante julgamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, também publicado pelo JusBrasil:
“APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL. 1. Se o paciente com o pé esquerdo necrosado se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para “aliviar o sofrimento”; e conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural. 3. O direito à vida garantido no artigo 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal. Nessas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo que consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução n.º 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70054988266, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Marinho, Julgado em 20/11/2023.)
Por enquanto, ainda não são permitidas no Brasil a eutanásia ou a morte assistida, somente a ortotanásia pode ser realizada. Considero isso uma lástima, se podemos poupar nossos animais amados quando estão com grande sofrimento, por que não podemos poupar as pessoas que mais amamos de sofrer um inevitável calvário que as levará a morte lenta, sem qualquer qualidade razoável de vida? E você, o que pensa sobre isso? Já pensou em fazer pelo menos um testamento vital para se resguardar um pouco?
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Foto da Capa: gerada por IA.