Adorno e Horkheimer, no livro Dialética do Esclarecimento (1944/1947), buscavam compreender por que a civilização, em vez de alcançar um estado de progresso, mergulhou em completa barbárie. A origem do esclarecimento se dá na transição do pensamento mágico para o pensamento mítico. Esse processo ocorre sob o imperativo da necessidade de conhecer a natureza para garantir a autoconservação, mediada pelo temor do mundo externo — primeiro na mitologia, depois nas formas das ciências modernas.
Antes mesmo de existirem meios manufaturados e industriais para dominar a natureza, o homem já buscava controlá-la por meio de intervenções mágicas e ações não comprováveis. Ou seja, o desejo de dominação e intervenção sobre o mundo natural já existia, motivado pela necessidade de autoconservação, pelo medo da destruição vinda da natureza desconhecida. Assim, ao desenvolver técnicas a partir do esclarecimento, o homem passa a atuar efetivamente sobre a natureza.
O problema não reside no esclarecimento em si. Inclusive, Adorno e Horkheimer não rejeitam o esclarecimento — ao contrário, é apenas por meio dele que o sujeito pode, de fato, progredir. No entanto, defendem um esclarecimento que reflita sobre si mesmo: sobre seus próprios fins, sob a égide da razão objetiva — aquela que pensa as finalidades que fundamentam conceitos como justiça e igualdade. Devem reconhecer que, por mais que o saber ofereça a possibilidade de progresso, também carrega um viés sombrio, como revelam as ações motivadas pela lógica da dominação.
No senso comum, vemos os efeitos dessa instrumentalização na contraposição entre razão e emoção. Na ciência, isso se manifesta na separação entre sujeito e objeto e na suspensão das faculdades do sujeito em favor do método e da técnica — cujo prestígio é tão grande que, ao incorporar conteúdos da razão objetiva, o discurso também cai em dimensões subjetivas. Essa característica é típica de uma ação demagógica.
O esclarecimento afirma que o elemento fundamental do mito é o antropomorfismo, ou seja, a ideia de que os deuses teriam características humanas. Xenófanes[1] critica os deuses do Olimpo justamente por essa razão. A resposta de Édipo ao enigma da esfinge — “é o homem” — parece expressar a máxima do esclarecimento ao classificar o pensamento mítico.
Esse processo de considerar o conhecimento mítico como mera projeção humana conduz à “desumanização do pensar”, ou seja, à exclusão do próprio homem do campo do esclarecimento. Tudo que remete ao antropomorfismo deve ser evitado pela técnica e pelos métodos. A Teoria Crítica, em sua concepção objetal, critica tal posição: o objeto também é o homem, e não é necessário que ele se exclua para compreender um fenômeno. Trata-se de uma crítica à teoria tradicional, que, segundo Horkheimer, é desenvolvida sob a égide do capitalismo.
O mito já continha elementos do que viria a se tornar a ciência moderna, e a ciência, por sua vez, ainda preserva traços do mito. Podemos identificar esses traços na falta de diferenciação[2] em relação à natureza — o homem, para agir sobre ela, precisa distinguir-se dela. No entanto, essa separação não foi plenamente realizada: a tentativa de erradicar o antropomorfismo falhou, deixando o homem igualmente subjugado à natureza, agora por meio do pensamento utilitário — fruto de seus temores e de seu desejo de dominar, tal como os mitos originalmente expressavam.
O homem acreditou ter dominado a natureza, mas tornou-se servo dela. O esclarecimento, sob a forma científica, deveria diferenciar o sujeito da natureza; contudo, acaba por confundir-se com ela — o sujeito se vê reificado pelas estruturas que o próprio esclarecimento produziu. A cada nova criação, o sujeito se torna seu servidor. Os mitos antecipavam a ideia de intervenção na natureza, algo que se concretiza, de fato, a partir do século XVII, com a Revolução Industrial, quando o saber científico se transforma em tecnologia e passa a alterar o ambiente natural, na tentativa de dominar as forças da natureza. O que aproxima mito e ciência é o caráter da repetição.
O mito é o primeiro passo do processo de esclarecimento. Ele distancia o sujeito do objeto (antes próximos pela mimese presente no pensamento mágico). Essa proximidade é substituída pela razão. Adorno e Horkheimer compreendem a mimese como associada à razão, pois representa a tendência do sujeito a dissolver-se no ambiente. O progresso da razão e da civilização busca o oposto: promover a separação entre sujeito e objeto — entre a natureza interna e externa. Contudo, a razão produz uma forma distinta de mimese: uma mimese[3] controlada, ensinada por meio da educação, com o objetivo de formar um sujeito civilizado. Adorno e Horkheimer também relacionam a mimese à pulsão de morte, descrita por Freud em Além do Princípio do Prazer (1920).
Um ponto importante sobre o pensamento mágico é que ele assusta, pois pode conter, entre suas possibilidades, justamente aquilo que o sujeito deseja evitar[4]. A própria presença dos deuses denuncia a possibilidade de que o indesejado ocorra. Por isso, os rituais se baseiam na repetição e na renovação dos votos, acompanhados do medo da punição em caso de falha. Os deuses não são bons por natureza — pelo menos, não são percebidos assim de forma inconsciente, mesmo que sejam conscientemente representados dessa maneira. Toda a estrutura dos ritos remete a deuses punitivos, normativos e dominadores. Horkheimer e Adorno afirmam que a imagem do mal já desperta o medo, e esse medo é o cerne da dominação.
Uma das teses principais da Dialética do Esclarecimento é que a dominação da natureza é, ao mesmo tempo, a dominação do próprio homem. Essa alienação está intimamente ligada ao conceito de ego e ao seu desenvolvimento. Inclusive, de acordo com Freud, o ego já representa a dominação do sujeito: até os seis anos, a criança precisa aprender a dominar seus impulsos imediatos (princípio do prazer), ajustar-se à realidade (princípio de realidade), superar o Complexo de Édipo e submeter-se ao princípio da autoridade, sobretudo representada pela figura do pai (ou por quem cumpra essa função). O esclarecimento aliena o homem tanto da natureza quanto de si mesmo:
“O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. (…) Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominação. Essa identidade constitui a unidade da natureza.”
(Adorno, Theodor W.; Horkheimer, Max, 1985, p. 24)
Essa dominação externa não ocorre sem um correlato de dominação interna[5][6]. Ou seja, é apenas por meio da construção de uma identidade que o sujeito pode realizar sínteses sobre o mundo. O ser precisa negar tudo aquilo que ameace essa realidade construída — “ele deve recalcar em si mesmo a natureza da qual foge na realidade material” (p. 12, artigo sobre a violência do esclarecimento).
De acordo com Adorno e Horkheimer (1947), a dominação do homem não implica apenas alienação, mas alienação de sua relação consigo mesmo. Essa alienação também se estende às coisas sobre as quais os homens exercem poder — estas precisam ser sempre iguais e previsíveis, para que os homens se sintam seguros diante do mundo. Assim, todo elemento desconhecido é rapidamente reduzido ao conhecido, por meio de métodos preexistentes.
Essa noção de dominação de si também aparece no capítulo “A Revolta da Natureza”, do livro Eclipse da Razão (1947). O animismo dotava as coisas de alma; o industrialismo reifica as almas. “O eu integralmente capturado pela civilização se reduz a um elemento dessa inumanidade, à qual a civilização desde o início procurou escapar” (p. 37, Adorno e Horkheimer, 1947). Esse cerceamento do eu nunca é completo, e por isso o esclarecimento sempre flerta com o controle e com a coerção social — uma vez que essa repressão não é plenamente realizada em todos os seres humanos. Essa ideia de coerção pode ser relacionada ao que Horkheimer discute em A Revolta da Natureza sobre os sujeitos resistentes e os sujeitos submissos.
Dessa forma, Adorno e Horkheimer mostram que o projeto do esclarecimento, ao invés de libertar plenamente o ser humano, acabou por aprisioná-lo em novas formas de dominação — agora internalizadas e naturalizadas pela razão instrumental. A tentativa de subjugar a natureza, guiada pelo medo e pela busca de controle, resultou na alienação do próprio sujeito, tanto em relação ao mundo quanto a si mesmo. A crítica da razão que os autores propõem não visa negar o esclarecimento, mas reorientá-lo: é preciso recuperar uma razão que não se reduza a técnica, cálculo e repetição, mas que reflita sobre os fins, valores e sentidos da existência humana. Somente assim o esclarecimento poderá cumprir sua promessa original de emancipação, rompendo o ciclo da dominação e da barbárie que ele próprio ajudou a instaurar.
[1] Possuía noções monoteístas.
[2] O pensamento abstrato pressupõe diferença com o sujeito com o objeto, não seria de espantar essa diferenciação do capitalista com o proletário dominado – é um traço da razão instrumental esse processo de desvinculação, que nega o indivíduo. Uma diferenciação que gera indiferenciação.
[3] Essa mimese exclui a promessa de felicidade imediata que a mimese incontrolada daria ao homem.
[4] Grifo meu.
[5] O que não foi possível sintetizar e transformar no “eu” constitui a sua dimensão do arcaico. O “eu” é formado por processos de violência e de dominação da natureza interior do próprio sujeito que está sendo constituído. “o correlato psicológico de tal redução da natureza nada mais é que o interminável processo de auto cerceamento por parte do sujeito” (artigo sobre a violência do esclarecimento. p. 15). Essa noção de subjugação do eu é também abordada no capítulo A Revolta da Natureza, no livro Eclipse da Razão (1947).
[6] O inanimado ganhava alma no misticismo. Na atualidade as almas são coisificadas. Ocorre o oposto, o animado se torna inanimado.
Ralf Diego Silva de Souza é psicólogo e professor universitário. Atualmente, é mestrando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e possui especialização em Psicologia Hospitalar pela ESUDA. Dedica-se ao estudo aprofundado de temáticas concernentes à Psicanálise Kleiniana, Marxismo, Teoria Crítica e Escola de Frankfurt. ralfsouzapsi@gmail.com
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Foto da Capa: Adorno e Horkheimer / Reprodução.