Tem-se falado muito na importância da liberdade do ir e vir. E é mesmo importante. Locomover-se, sem dúvida, é essencial ao ser humano. O curioso é o tom de cobrança associado à palavra liberdade. É uma nova revolução libertária que está nascendo? Talvez, porque se tem coisa que a humanidade soube fazer ao longo de sua história foi restringir o livre andar. O cerceamento vem de longe. Não saberia contar essa história, mas imagino que deve ser riquíssima. Começaria, talvez, com a invenção da propriedade privada, passaria pelos muros, fossos, arames farpados e casos prosaicos como as restrições dos primeiros museus austríacos: abertos a qualquer um, desde que calçados… Sim, o direito de ir e vir é classista, racista, discriminatório. Na verdade, há tantos impedimentos para sua plena realização que a defesa da liberdade do ir e vir soa irônica, para não dizer maldosa. Liberdade para quem?
Entre tantas restrições nesse direito que eu também acho básico, trago aqui a questão dos transportes públicos das nossas cidades. Ele tem público no nome, mas sabemos que nem todos têm as condições que possivelmente a maioria dos meus leitores têm de andar para cá e para lá nesse sistema. Para muitos, os agraciados com um emprego, o ir e vir se resume à obrigação de fazer o percurso da casa para o trabalho e vice-versa. Para muitos outros nem isso. Quantas histórias já ouvi de que levar os filhos numa atração domingueira no centro da cidade era impossível pelo custo das passagens. Os museus, no nosso caso, são abertos a todos, mas desde que cheguem lá…
A questão não é só o custo exorbitante do transporte público comparado aos salários dos brasileiros, passa também pelo seu gerenciamento, conforto, lotação, limpeza e pela organização de suas linhas. É um sistema extremamente injusto. Ele nasceu como negócio, com reserva de mercado e política (linhas municipais, linhas intermunicipais) e foco nos resultados. E assim se mantém. Não é um serviço pensado para atender aos cidadãos em suas generalidades e especificidades. Tão injusto que as poucas isenções são subsidiadas pelos demais passageiros e não pelo poder público. São os de baixa renda que cobrem os custos dos que não podem pagar e, pasmem, de muitos que podem, mas não perdem a chance de um benefício. Um desatino completo. O legítimo cumprimento dos políticos com o chapéu alheio… Chamam isso de passagem social, sério.
Na década de 1970, a ditadura resolveu “limpar” a área da Ilhota, berço do samba em Porto Alegre. Em seu lugar, hoje, temos os quarteirões dos dois lados da Av. Érico Veríssimo. Ginásio Tesourinha e Centro Municipal de Cultura inclusive. O programa governamental, não por acaso, tinha o nome CURA. Sim, havia algo ali que era entendido como doença: pobres sem escritura de suas casas em lugar de grande potencial imobiliário para quem pudesse pagar. O lugar escolhido para depositar os moradores foi a construção de um loteamento no longínquo bairro que hoje é a Restinga (24km distante do anterior). Não havia escolha, a presença da Brigada Militar, os caminhões da prefeitura – ou terão sido do exército? – estavam ali para a decisão ser cumprida.
Até então, como na maioria das cidades do mundo, os ônibus da cidade tinham tarifas diferenciadas conforme a distância que era percorrida. Só que o que os moradores da Restinga teriam que pagar era tão absurdamente alto que a prefeitura não teve alternativa se não criar a chamada tarifa social, ou seja, preço único da passagem para toda a cidade. A solução encontrada foi fazer equalização do preço com a distribuição do custo para os outros passageiros. Começou aí o cumprimento com o chapéu alheio… Quem deveria ter arcado com os custos deveria ter sido quem criou o problema, não? Mas reclamar para quem, se vivíamos num regime de exceção? Numa ferrenha ditadura que levava ao DOPS até cristão que falava em dividir o pão.
Aos poucos outras tantas isenções meritórias, ou nem tanto, foram sendo incluídas no sistema. Sempre ao custo dos demais passageiros. Longe de mim questionar as isenções, fomentar uma disputa entre passageiros. Não é isso. A injustiça está em o poder público nunca ter assumido esse custo, em não ter conseguido viabilizar um sistema de transportes único, intermodal, totalmente público e com tarifa acessível – ou não tarifa –, adequada à realidade social desse país. Convenhamos, liberdade de ir e vir com esse custo?
Hoje, finalmente entrou na pauta política o custo zero dos transportes urbanos. A ideia é excelente, mas tem riscos. E grandes! Tem empresário festejando, os moldes lembram o financiamento feito diretamente aos caixas das universidades, o FIES. Defendo transporte público com preço acessível realizado por empresas públicas como acontece na maior parte das capitais europeias. Não concordo com a tarifa zero, acho que ela devia ter um preço acessível, tipo 50 centavos, e isenção para quem não pode pagar. Além de facilitar a elaboração de quadros estatísticos de origem e destinos dos passageiros, não daria benefício a quem pode contribuir minimamente para a manutenção do sistema.