Caro leitor ou leitora, vou te fazer um convite. É um pouco diferente do que já leste por aqui. Vamos sonhar qual a cidade que queremos? Como seria a urbe dos seus sonhos? Vamos fechar os olhos e sonhar, visualizar por alguns minutos?
Tá difícil? Pois qualquer coisa extraordinária que tenha sido feita partiu da cabeça, do sonho de alguém… E todo sentimento que isso envolve, as sensações que provocam, impactam no destino dos nossos desejos.
Vou contar um pouco sobre a cidade que sonho e misturar com fatos reais. Ou seja, vou abrir meu sonho, jogar a ideia no universo… quem sabe ela se realize?
Na Porto Alegre dos meus sonhos, as pessoas se ajudavam, colaboravam entre si. Mais que isso, segmentos diferentes percebiam o que poderiam potencializar uns aos outros. A rede de lojas que vendia equipamentos de jardinagem apoiava a realização de projetos de incentivo aos pátios e jardins mais bonitos. Um deles era de concursos de espaços mais bem cuidados. Havia categorias diversas, para bairros, prédios, casas e condomínios. Entre os benefícios, havia descontos e isenção de IPTU. Inclusive havia aulas sobre a importância das árvores, dos cuidados para que as áreas não tivessem focos de proliferação de mosquitos, entre outras coisas relacionadas ao asseio e à necessidade de preservarmos a nossa biodiversidade.
Nessa minha cidade imaginária, o prefeito andava a pé, de ônibus e bicicleta. Seus secretários também. Cada dia estavam num canto do município ouvindo os moradores, sabendo o que estava acontecendo. Estavam sempre interessados no que poderiam ajudar as pessoas a terem uma melhor qualidade de vida. Sabiam que o seu papel era servir à população. Que o melhor para coletividade seria que um lugar que atendesse as necessidades tanto da moradora de 80 quanto do nenê de 8 meses e sua mãe.
Uma das coisas mais legais desse lugar é que as pessoas de organizações diferentes se reuniam para aprender umas com as outras. Engenheiros, arquitetos se encontravam pelo menos uma vez por semana com professoras, tias de classes iniciais, para saber mais sobre a comunidade escolar, sobre como poderiam deixar as escolas melhores. Até para saber onde reparar as escolas que precisassem de alguma obra. Empreiteiros, construtores iam nas praças conversar com biólogas, agrônomos para trocar informações sobre como ter o melhor design para as hortas comunitárias. Nessa cidade, as pessoas sentiam empatia umas pelas outras e queriam entender como suas atividades poderiam facilitar a vida de todos.
Havia vários tipos de veículos de comunicação, para tipos diferentes de pessoas. As redes sociais pagavam para quem publicasse conteúdo de qualidade. E os jornalistas eram bem remunerados, inclusive premiados pelos conteúdos mais inspiradores, que mostrasse histórias inusitadas. Já quem publicasse mentiras e fake news era penalizado, a ponto de ser expulso da comunidade virtual. Mas como todos sabiam o significado de transmitir informações falsas, não ousavam querer enganar o vizinho.
Além de ter corredores com muito verde, havia um sistema de transportes silencioso e muito eficiente. Também tinham muitas ciclovias. Ao longo das águas límpidas do arroio Dilúvio e do Guaíba, a mata ciliar apresentava recantos que todos gostavam de frequentar para observar aves, tomar banho e desfrutar o pôr do sol.
Você pode estar achando que estou viajando demais na maionese…
Mas confesso que minha imaginação se soltou ao perceber as inúmeras possibilidades que podem ser desenvolvidas quando fiquei sabendo que duas associações de áreas distintas têm interesse mútuo em trocar, se ajudar.
Agora é real
Ontem, dia 10 de novembro, abriu uma exposição de artes visuais promovida pela Associação de Artes Plásticas Francisco Lisboa na Associação Médica do Rio Grande do Sul que sela uma parceria entre as instituições. É a mostra Artistas da Chico Lisboa, que estará aberta ao público até o dia 24 de novembro. E como no meu sonho, a gentileza, a receptividade, a abertura a tantas possibilidades parece que é possível. O primeiro passo foi dado.
Para começar, os participantes do III Festival de Arte Têxtil Fibra de Artista doaram 80 trabalhos – peças que estão expostas no encontro, cujo tema de inspiração foi a gratidão – justamente para agradecer o empenho dos médicos que estiveram na linha de frente no combate à COVID 19. A Amrigs dará destino às obras. Ainda não sei se vão parar em hospitais, salas de espera de consultórios ou na casa de um agraciado. O que sei é que é uma bela ideia para demonstrar o quanto precisamos valorizar quem faz a diferença. E a iniciativa merece celebração tanto por tudo que os médicos que honraram a profissão fizeram quanto pelas as artistas que desapegaram das suas criações para ofertar a esses profissionais.
E Porto Alegre é uma cidade que tem muito, mas muito mesmo, talento e recursos tangíveis e intangíveis, que precisam fluir, serem reconhecidos mais entre os diferentes segmentos. Já se perguntou quantas cidades dispõem de um espaço público como o Atelier Livre Xico Stockinger? Ou um museu como o Iberê Camargo? E sabe quantas escolas e ateliês de arte existem na cidade (não sei se alguém sabe)? Sabia que Porto Alegre tem uma escola para pessoas em situação de rua que disponibiliza aulas de cerâmica? Só que, apesar dessa abundância, na maior parte dos consultórios, clínicas, as paredes não refletem essa riqueza que a capital gaúcha apresenta. Pior. Nem a prefeitura, nem os formadores de opinião e os tomadores de decisão parecem saber disso. E há muitos artistas que tem dificuldade de pagar as contas, porque sua arte não é valorizada.
Por outro lado, a cidade tem dezenas de centros médicos de excelência, hospitais de referência em milhares de tratamentos. Vem gente de vários cantos do Brasil para fazer transplante na Capital do Rio Grande. Sem falar das universidades, faculdades de medicina… Temos médicos, cirurgiões, anestesistas, enfim, gente muito qualificada que trabalha demais e é bem remunerada. Exportamos mão de obra ultra especializada para vários cantos do mundo.
Então, está mais do que na hora de aproximar essas pontas? Por que não relacionar mais os meandros do fazer artístico com o mundo de quem vive ou orbita no jet set da medicina? Em um contexto em que há cada vez mais distúrbios mentais, psicossomáticos, o acesso à arte pode ser um caminho promissor para atenuar o sofrimento de todos: médicos, pacientes, enfermeiros, secretários, técnicos de enfermagem, enfim, todos envolvidos em comunidades que visem a promoção da saúde. Todos também precisam de cuidados! Talvez pela velocidade das transformações, nunca tivemos acesso a tantas possibilidades. Mas saber o que é melhor para nós no meio disso tudo, é um baita desafio.
No meio desse turbilhão, dessa infodemia, que tal ter mais contato com arte? Arte para contemplar, arte para se descobrir, arte para desopilar, arte para colecionar, arte para presentear. E, é claro, conhecer, compreender as artes de diferentes linguagens? Em Porto Alegre, há artistas para todos os gostos!
Eu, por exemplo, sou uma artista nada convencional. Procuro aproximar mundos, promover conexões, articular grupos. Faço isso de várias formas, além de fazer cerâmica, criar microjardins, inclusive sendo colunista da Sler… Acredito que tudo isso também são formas de arte. Fiquei sabendo dessa parceria porque sou uma das participantes da mostra. Revelo esse sonho acordada porque à medida que a Lisiane Rabelo, presidente da Chico Lisboa, me explicava os motivos da mostra muitas possibilidades passaram pela minha cabeça. Só que, é claro, o ponto de partida precisa ser o da abertura entre as partes, pois são mundos bem diferentes.
Estou no momento como uma jornalista, uma observadora dessa relação. Talvez o que um segmento tenha demais, o outro tenha de menos… O fato é que há médicos, assim como artistas, de inúmeros perfis. O que espero é que os protagonistas das instituições consigam valorizar e fazer acontecer o quanto essa mistura é potente. Pode trazer benefícios para milhares de pessoas: moradores, usuários dos sistemas de saúde, para gente que faz arte, gente que sabe da importância da arte, gente que entende o quanto a arte enriquece culturalmente a cidade, o Estado, o País.
Encerro citando um fato concreto de como a parceria entre médicos e artistas têm gerado ótimos resultados. O livro “A escultura pública de Porto Alegre”, de autoria do historiador da arte José Francisco Alves, foi viabilizado com o patrocínio direto da Unimed Federação-RS, da Unimed Porto Alegre e apoio da Sidi Medicina por Imagem (aliás, gosto de fazer exames lá porque aprecio as obras nas paredes).
A obra do Francisco, que foi meu professor no Atelier Livre, é um tesouro. Resultado de mais de 25 anos de pesquisa. É uma obra-prima, com capa dura, 412 páginas e quase duas mil imagens, atuais e históricas e peso de 2,365 Kg. Sem dúvida, um legado para gerações. Lendo a obra do Chico, como é conhecido entre artistas, dá para constatar as diversas fases de uma Porto Alegre rica em diversidade e manifestações artísticas, que já soube valorizar bem mais todas as dimensões do seu patrimônio. Pois, como já deu pra sacar, há Chicos que fazem História por aqui.