Uma das experiências mais difíceis que passei enquanto filha e cuidadora da minha mãe idosa, foi quando ela, internada em tratamento para o câncer da tireoide, contrariou a orientação médica. Aqui, cabe abrir um parêntese para esclarecer que o tratamento do câncer varia de acordo com a sua origem. Como o da mãe era na tireoide, a radioiodoterapia é a base do tratamento para a cura. No entanto, esse recurso já estava esgotado e os médicos indicavam dez sessões de radioterapia. Uma alternativa para a dor – que já era enorme – e a contenção da doença. A mobilidade da mãe, àquela altura, estava comprometida, nas distâncias curtas movia-se com andador e nas longas com a cadeira de rodas, especialmente por conta das dores. E a falta de independência a agoniava sobremaneira.
Todos nós, filhos, genro, noras e netas, e a mãe ficávamos com muitas expectativas a cada vez que ela se internava porque voltava melhor, conseguindo arrumar o jardim, cozinhar o almoço pra família aos sábados, realizar as atividades que curtia. No entanto, ao ouvir a recomendação dos médicos para realizar as dez radioterapias, declarou que faria apenas uma radioterapia com a “carga” das dez (desculpa aí especialistas da área da saúde, eu sou de humanas!). O que isso significava? Conforme os médicos, menos eficácia no tratamento. E aí, a porca torceu o rabo! A minha reação inicial foi de revolta. Eu queria a mãe com menos dor e com mais tempo de vida, já que o tratamento prescrito pelos médicos era mais eficaz.
Empatia. Conexão
Ao ouvir a mãe, não me parecia razoável os argumentos dela: estava com medo das dores que teria a cada vez que entrasse no aparelho. Que a metástase que seria “tratada” pela radioterapia ficava numa área de difícil acesso e que precisaria ficar numa posição altamente desconfortável, que ela – naquele momento – já não conseguia ficar nem por um minuto. Que não tinha disposição de ir e vir ao hospital por dez vezes consecutivas (naqueles dias a gente precisava de ambulância para levá-la e buscá-la). Eu ouvia dela teimosia, medo e dor e não entendia. Argumentava saúde, tempo de vida, números e estatísticas enviadas pelos médicos, lutava.
Aí, parei e compreendi que a escolha era dela. Consciente dos riscos e resultados, cabia a ela escolher entre a dor de fazer as dez radioterapias, tratamento mais eficaz e indicado, ou apenas uma, como desejava. Ela tinha o direito de decidir sobre si mesma, por mais que isso doesse em mim, por mais que isso contradissesse atitudes que eu não tomaria. Afinal, consegui entender que a escolha que me cabia fazer era a de defender a autonomia da mãe junto a equipe médica, compreendendo que a decisão pelo tratamento a seguir era um direito dela e me apaziguando.
Um peso, duas medidas
É comum declararmos “vossos filhos não são vossos filhos, são filhos do mundo” quando queremos dizer que criamos nossos rebentos para serem livres, donos de suas escolhas. E quando as escolhas deles são diversas das que gostaríamos, no geral, toleramos justificando com frases como “essa geração pensa diferente”, “são os novos tempos”, “ainda é jovem”, “vai aprender com os erros”.
Engraçado que isso não funciona muito bem quando nos tornamos filhos adultos e nossos pais passam a precisar de cuidados. Veja só: eles que a vida toda tomaram suas decisões continuam a fazer suas escolhas, mas como somos diferentes, nem sempre essas escolhas combinam. Então, como filhos adultos, tendemos a achar que sabemos mais que nossos pais, que estão velhos. Foi essa a “chave que virei” com essa experiência.
Autonomia x Negligência
Entendo que há uma diferença entre respeitar a autonomia e negligenciar o cuidado aos pais. Por exemplo, uma coisa é os filhos, morando longe, entenderem a escolha de seus pais de se manter na cidade onde estão, perto dos laços que lá criaram numa vida inteira. Autonomia. Para respeitar a vontade, fazer-se presente e garantir o cuidado deles, esses filhos podem fazer contato por telefone, vídeo chamada, visitar quando possível, pedir que amigos e parentes deem uma olhada, participar de consultas médicas virtualmente, entre outras formas. Outra coisa é, com a justificativa dessa escolha dos pais, não realizar nenhum tipo de contato, de cuidado, abandonando-os à própria sorte.
Autonomia X Demência
Também penso que é muito digno e belo quando filhos adultos mantém a autonomia até a última possibilidade de pais com demência ou outras doenças crônico-degenerativas. Acho bonito quando observo que é dado a esses pais a possibilidade de escolha de programas, de roupas, de companhia, de alimentos, de fazer ou não sozinho/a suas atividades de vida diária, de acordo com o grau de autonomia e independência de cada pessoa. Sei que é um caminho mais difícil, mas entendo que é mais amoroso e respeitoso, que honra a história dessas pessoas.
Como termina a minha história…
Percebi que, como filha, precisava ajudá-la perante a equipe médica, que também não estava de acordo com a escolha da mãe. Nessa negociação, como familiar, na defesa do princípio do paciente, ponderou-se todos os riscos do tratamento, os argumentos da mãe e foi soberano o Código de Ética Médica, o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.
Se realmente foi menos eficaz o tratamento para a mãe? Não saberia dizer. Naquela vez ela saiu feliz do hospital, sabendo que havia vencido duas batalhas: a da sua vontade, que havia prevalecido, e a das dores, diminuídas. Por mais um tempo, ela voltou a preparar os nossos almoços reunindo toda a família, a cuidar das orquídeas, da hortinha, do jardim, a fazer as atividades que mais gostava.
Como você deve (ou não) saber, minha reinvenção profissional na área da longevidade e envelhecimento se iniciou a partir dos cuidados com a minha mãe, como conto nesse artigo. A respeito dessa experiência de filha cuidadora escrevi um artigo aqui na Sler intitulado Escola de Filhos (leia aqui), que teve uma repercussão inesperada com o tanto de filhos sofridos pelas dores, dificuldades, sufocamentos, dúvidas com relação aos cuidados com seus pais idosos . Fruto disso tudo, está nascendo a Escola de Filhos Adultos (link aqui), pra ser um ponto de construção de saber, acolhimento e troca de experiência.
Foto da Capa: Pexels