Ocorre às vezes comigo – não sei se é o caso da leitora e do leitor – de não se sentir propriamente feliz e orgulhoso com a condição de brasileiro. Não se trata, obviamente, de propor uma recaída na triste síndrome simplificadora do “Brasil: Ame-o ou Deixe-o”, no contexto tóxico dos anos da ditadura militar (com seus espasmos post-mortem atuais). Mas há dias, há eventos, há circunstâncias que nos fazem desconfiar que o projeto de constituição dessa nação, efetivamente, ainda tem muito o que resolver. Limito-me, neste depoimento, às seguintes duas cenas que me pegaram de jeito, nesses dias. Cenas brasileiras, por excelência.
Cena 1: um trabalhador, que chamarei aqui de José, que vinha prestando serviços esporádicos de manutenção em minha casa, na cidade de Natal (RN), onde resido e trabalho já há mais de 20 anos, foi procurado há alguns dias por agentes da polícia civil em sua casa, na zona norte da cidade, e levado para “esclarecimentos” referentes a evento violento em que teria se envolvido há 30 anos, evento do qual resultou a morte de um traficante de drogas. Ao chegar à delegacia, o que antes tinha sido anunciado como prestação de informações tornou-se reclusão, e o referido trabalhador ficou preso em unidade de encarceramento provisório. No momento em que redijo estas notas, o aprisionamento provisório passou a definitivo, e o referido trabalhador foi deslocado para o principal presídio do sistema carcerário potiguar, a Penitenciária Estadual de Alcaçuz. José não tem recursos para engajar advogado para sua defesa, e nesse sentido, teve designado defensor público. Até onde sei, os defensores públicos em Natal têm feito trabalho digno e de imenso valor para o que resta de cidadania de muitos Josés, mas justamente são poucos profissionais para a demanda que se apresenta. Ao perceber isso, a família de José tem feito imenso esforço para captar recursos e conseguir engajar um advogado privado, mas estes familiares se queixam do quão difícil é falar com advogados, entendê-los e se fazer entender. Até agora, esses familiares não conseguem entender como e por que, passados mais de 30 anos, José foi preso em sua residência, local sabido e conhecido durante todo esse tempo, durante o qual nunca se caracterizou como foragido. A família não entende como avaliar e eventualmente rever a pena de um trabalhador com mais de 60 anos, diabetes cronificada, com residência fixa conhecida. O advogado privado levantou a possibilidade de conseguir a referida revisão de pena, mediante pagamento de determinada soma, cujo montante a família não consegue entender, apesar da tendência ser de se assujeitar e mobilizar as vaquinhas digitais todas para conseguir tal montante. José segue preso, numa das masmorras que configuram a realidade penitenciária brasileira contemporânea, com população carcerária superior a 900 mil pessoas em 2024 – a terceira maior população carcerária do mundo (Conselho Nacional de Justiça – CNJ – dados de maio/2025).
Cena 2: um conhecido político brasileiro, ex-presidente deposto por ação constitucional de impedimento e processado civilmente por delitos envolvendo corrupção, tráfico de influência e outros crimes do “colarinho branco”, aqui alcunhado como Ippon, tal político teve sua prisão decretada por deliberação do Supremo Tribunal Federal, e, ato contínuo, conduzido a presídio na cidade de Maceió (AL), sua cidade de domicílio. No referido presídio, houve um bafafá imenso, por se avaliar que não havia local “adequado” para receber o referido apenado Ippon. Sobrou para o diretor do presídio, que viu sua sala de trabalho requisitada para, mediante reformas a toque de caixa (que incluíram instalação de um novo aparelho de climatização), ser adaptada para cela adequada (!!!). Mas não houve sequer oportunidade para o ilustre apenado se beneficiar da sala do diretor do presídio reformada para a condição de cela: graças à ação eficaz e competente de seu corpo de advogados, o apenado se beneficiou de revisão do regime de pena, que passou a domiciliar, com o acréscimo da já conhecida tornozeleira eletrônica. O domicílio indicado para cumprimento da pena foi um apartamento de cobertura em prédio situado em zona nobre do litoral de Maceió, com os apetrechos e mimos habituais da alta burguesia brasileira, como piscina de borda infinita, churrasqueiras, equipamento de bar, e outras cositas más. O básico. Pois, como disse um dos personagens do livro Animal Farm (A Revolução dos Bichos, em tradução para o português brasileiro), “todos os bichos são iguais perante a lei, mas alguns bichos são mais iguais que outros…”. Voilà.
Não são cenas edificantes. Somos um país montado historicamente sobre abismo social, racial e econômico. Disso resulta o perfil da população carcerária brasileira, que acumula o rescaldo de deserdados, pobres, analfabetos funcionais e mortos em vida pelo estigma da “ficha suja”. Inviabilizados pela defasagem de educação que lhes impede um mínimo de instrumentalização para sequer entender os meandros dos respectivos status jurídicos – o que os deixa à mercê dos malfadados aproveitadores de porta de cadeia.
Já há muito desceu pelo ralo a representação social do “homem cordial brasileiro”. Homens cordiais não incendeiam mendigos nas madrugadas das grandes cidades, não assassinam mulheres assimiladas a reses possuídas, não amerdalham símbolos sagrados da República em farras golpistas infames. Resta-nos o quê, como representação social nestes tristes trópicos? Resta-nos o quê, face à desdita de José e à ignomínia de Ippon?
Às vezes, ser brasileiro dói.
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Foto da Capa: Gerada por IA.