Às vezes, a leitura de um livro é como um soco no estômago. Não apenas uma experiência emocional, mas um abalo, quase físico, que nos pega de surpresa e nos faz sentir algo tão intenso que é difícil de processar imediatamente. Essa pancada literária pode vir de diversas formas. Em alguns casos, está nas palavras cruas e diretas do autor e nos revelam verdades por nós ignoradas ou que expõem as complexidades da vida com uma clareza dolorosa. Outras vezes, surge através de personagens tão reais e próximos de nós que seus sofrimentos se tornam nossos, e suas angústias reverberam em nossas próprias vidas.
O romance de estreia da psicanalista Rafaela Degani exerceu esse poder sobre mim, levando-me ao ano em que um vírus assolou o mundo, fazendo com que nos afastássemos das pessoas para protegê-las e a outro tempo mais longínquo, sobre o qual me debruço constantemente: o período da ditadura militar brasileira, uma época em que as separações eram involuntárias e marcadas pela repressão e pela violência do Estado. Ao longo da leitura, me vi confrontado com memórias e sentimentos há muito adormecidos, que surgiam das páginas como se estivessem à espreita, esperando o momento certo para emergir.
Confinada com o marido, o pai e a filha pequena durante a pandemia, a protagonista de Menina em claro (Patuá, 2022) escreve uma carta para a mãe morta há alguns anos. Nesse monólogo, ela relembra a própria infância e adolescência e a relação conflituosa entre as duas, juntando peças que a fazem entender a causa de certos comportamentos e reações. Entre essas lembranças está o desaparecimento de um tio durante a ditadura militar, um evento que alimentou seu medo constante de ser sequestrada, um sentimento persistente nos primeiros anos de sua vida. Já adulta, em busca de mais detalhes sobre a história desse tio, ela viaja à Argentina. Lá, encontra uma antiga namorada dele, que revela episódios de sua vida na clandestinidade e os acontecimentos que levaram ao seu desaparecimento.
Muitas vezes, o que causa impacto em um livro é sua capacidade de nos desafiar a sair da zona de conforto. Ele nos força a encarar aspectos da sociedade, de nós mesmos ou do mundo que preferimos não pensar. É aquele momento em que a ficção se mistura com a realidade e percebemos o enredo falando diretamente conosco.
A personagem de Rafaela Degani divaga sobre as suas divergências com a mãe e lamenta a falta dessa mesma mulher de personalidade difícil, privada pela morte do convívio com a neta. Ao mesmo tempo em que perdoa a genitora, tantas vezes ausente e impaciente em seus anos de menina, ela também se liberta da culpa por não ter conseguido com que as coisas fossem diferentes. De não ter tido tempo de dizer àquela mulher que a amava, antes que a doença avassaladora a levasse embora.
Perdi o meu pai na pandemia. Talvez esse seja o principal motivo desse livro ter mexido tanto comigo. Não o perdi para o vírus cruel que assolava a humanidade, pois todos os cuidados foram tomados de forma incessante para que, além da doença de que tratava há alguns meses, nada mais lhe afetasse. O mal que o levou foi o mesmo que matou a mãe da protagonista. Descobrimos o tumor e as metástases um mês antes do mundo parar por causa do Coronavírus. Desde então, cada decisão, cada gesto girava em torno de protegê-lo não apenas da doença que tratava, mas também de qualquer outra ameaça que o pudesse fragilizar ainda mais. Mesmo assim, no dia 6 de fevereiro de 2021, ele se foi, não resistindo ao câncer avassalador no pulmão.
Com a partida do meu pai, a minha mãe passou a inspirar cuidados, vindo morar em minha casa no período de luto, quando ainda vivíamos em isolamento. Não foi fácil nos adaptarmos com a ausência daquele que esteve sempre à frente de tudo e, ao mesmo tempo, lidar com os fantasmas de uma convivência forçada por conta das circunstâncias. Naqueles dias de enclausuramento e dor, eu me vi, muitas vezes, tentando lidar com traumas e histórias mal resolvidas na infância e na adolescência. Conflitos entre mãe e filha escondidos embaixo do tapete vieram à tona e precisaram ser discutidos.
Menina em Claro me fez revisitar aqueles dias difíceis e perceber o poder da literatura como um caminho para a cura. Assim como as personagens do livro, nenhuma de nós é culpada pelas dores que carregamos — o verdadeiro vilão é o patriarcado, que perpetua a maioria dos males que enfrentamos. Nossa luta deve ser direcionada a ele, e não a outras mulheres. O livro de Rafaela Degani, sem dúvida, merece alcançar muitos leitores. É uma leitura marcante e provocadora que, como um soco no estômago, nos deixa sem fôlego, revelando novas perspectivas sobre as relações familiares.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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