É provável que você não saiba de onde vem, quem canta e nem o significado da música Another Love, do cantor inglês Tom Odell. Mas é certo: você já passou pela trend no Tik Tok, Instagram ou Facebook com um trecho desta música na trilha sonora. O título comunica o óbvio: a música é sobre o amor romântico. Porém, nem tudo que é óbvio para quem compõe também será para quem interpreta ou reutiliza a mensagem. Another Love se tornou uma música de mobilização social em solidariedade às mulheres iranianas vítimas de violência de gênero.
O trecho da letra da música usada em vídeos postados por multidões nas ruas ou grupos de amigos cantando juntos é o seguinte: “E se alguém te machucar, eu quero lutar/ Mas minhas mãos foram quebradas muitas vezes/ Então eu vou usar a minha voz, eu serei tão rude/ As palavras sempre vencem, mas eu sei que vou perder”. Inicialmente, as primeiras postagens foram registradas no Oriente Médio, com imagens do clipe da música de Odell lançado em 2013, como forma de protesto.
O episódio desencadeador do compartilhamento viral da música foi a morte da iraniana de Mahsa Amini, de 22 anos, sob custódia da polícia da moralidade no Irã. A jovem foi apreendida por não usar o hijab corretamente – o lenço que cobre a cabeça. Logo depois da morte noticiada em 16 de setembro, circulou uma fotografia da jovem em um hospital de Teerã em coma. A morte de Amini virou símbolo da violência da polícia e do regime do Irã em relação às mulheres e às minorias, ela era curda, membro de um dos grupos étnicos minoritários mais oprimidos no país islâmico.
As manifestações de protesto tomaram as ruas de Teerã, a capital, ao mesmo tempo em que invadiram o mundão da internet, com as imagens sempre acompanhadas da música de Odell. Em um show recente, Odell disse: “Estou chocado com os eventos que estão ocorrendo no Irã. Estou enviando amor e pensamentos para essas pessoas incrivelmente corajosas que defendem os direitos humanos e defendem as mulheres.” A escolha do recorte do trend em “As palavras sempre vencem, mas eu sei que vou perder” é sintomática da ação desiludida. Os protestos estão postos e são uma vitória da mobilização social em meio a tantas perdas.
A ressignificação de uma imagem, música, pintura, texto para recirculação na internet tem diversas implicações abordadas nos estudos sobre comunicação social, direito e estudos culturais, pois muitas vezes o trabalho de um artista ou escritor é utilizado indevidamente. No ambiente digital, as pessoas agem sobre as mensagens mudando a perspectiva ou os usos de acordo com o repertório social e o contexto histórico. Símbolos culturais podem ganhar um sentido diferente da emissão para a recepção, de acordo com a apropriação social.
Foi o caso do personagem Bert, da Vila Sésamo, que apareceu ao lado do líder da AlQaeda Osama Bin Laden em cartazes de protestos no Oriente Médio. O episódio foi relatado no livro Cultura da Convergência de Henry Jenkins, publicado em 2007. A imagem do boneco ao lado de Bin Laden foi extraída do blog de paródia Bert is Evil e ganhou o mundo quando a cobertura da CNN deu notoriedade para o mal-entendido cultural. Fechando o círculo, fãs divertidos produziram uma série de novos sites, ligando vários personagens da Vila Sésamo a terroristas. Como acentua Jenkins, o espaço da convergência é onde as “velhas e as novas mídias colidem, onde a mídia corporativa e a mídia alternativa se cruzam, onde os poderes do produtor e do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis”. Jenkins, em 2007, estava descrevendo o fenômeno que hoje é amplamente difundido, o de recirculação de conteúdos fora de contexto provocando manipulações e distorções.
Mas o remix multimídia nem sempre tem uma intencionalidade desinformativa. O caso da música Another Love disseminada em contexto distinto do original para prestar homenagem à Mahsa Amini e apoiar as mulheres iranianas é o melhor uso possível para os recursos interativos de edição que hoje estão à disposição de todos. Quando uma música de amor romântico vira uma causa social, eu volto a acreditar nas redes sociais digitais para muito além de ambiente de mídia de propaganda paga. A internet nasceu com o ideal de horizontalização da comunicação, nos afastamos léguas de distância da concepção inicial, mas a cultura da participação, às vezes, nos surpreende e nos permite engajar e esperançar. Já postou Another Love no seu perfil?