Passei as últimas semanas dedicado à releitura miúda e detalhada de A terra dos mil povos, obra do ativista e escritor indígena Kaká Werá Jecupé, indicada como uma das leituras obrigatórias do vestibular da UFRGS. Isso porque deve sair em breve um volume apresentando essas leituras para estudantes, publicado por uma das editoras mais recentes a aparecer no cenário local, a Casa de Astherion.
Eu já havia lido o livro por alto há alguns anos para criar o roteiro de um vídeo para o canal Admirável Mundo Livro sobre literatura e indígenas, também publicado em abril. Na época, foi pouco visto, hoje é a peça mais assistida do canal, imagino que justamente por efeito de indicações em vestibular aqui e acolá de obras de autores citados lá, como o próprio Kaká Werá, Ailton Krenak ou Davi Kopenawa. Também pela minha pressa panorâmica, minha leitura do livro A terra dos mil povos foi rápida, a impressão que o livro deixou foi interessante, mas nada além disso.
Nesta releitura mais atenta e próxima, a história é outra. A terra dos mil povos é um livro difícil de classificar, para começo de conversa. É uma obra de não ficção que se propõe a contar a história do Brasil pelo “lado avesso”, pelo ponto de vista dos povos originários que já habitavam o país antes da chegada de Pedro Álvares Cabral. Para isso, parte do livro é dedicada a uma cronologia de datas e fatos que recuperam a “linha do tempo” do Brasil não pelo ponto de vista dos portugueses colonizadores e pela estrutura política e social que eles montaram nesta terra, mas pela ótica dos indígenas perseguidos, apresados e dizimados por essas escolhas políticas e administrativas.
Cruzamento de gêneros
Mas o livro não é apenas isso, há mais coisas. Esse, aliás, é um dos pontos que dificulta sua catalogação cartesiana: é uma obra fragmentária, episódica, passando por vários aspectos da cultura indígena, apresentando a cosmogonia dos indígenas, sua visão de mundo cíclica e menos direta, seu legado muitas vezes negado e os grandes personagens dos povos originários ao longo da história do Brasil, do histórico criador da Confederação dos Tamoios, Cunhambebe, ao primeiro deputado indígena na moderna política brasileira, Mário Juruna. E o livro faz esse apanhado em uma linguagem ela própria mergulhada na cultura indígena, por vezes poética e circular, por vezes elíptica. E o que mais me impactou nesse mergulho foi perceber o quanto, imersa nessa linguagem elusiva e pouco direta, nada “científica” pelos padrões ocidentais europeus, estão visões de mundo que são a seu modo confirmadas pela ciência moderna – e que até mesmo a anteciparam.
Um dos tópicos aos quais Werá Jecupé dá muita importância é ao entendimento da mentalidade indígena de que o ser humano é um elo em uma ampla cadeia natural, parte da natureza sem uma clara posição hierárquica sobre os demais seres. Não apenas a visão de mundo indígena enxerga o tempo como uma sucessão de ciclos, como também vê a própria história da humanidade sobre a Terra como parte de um carrossel de ancestralidades e etapas.
Cosmogonia
No livro, Werá Jecupé se dedica com alguma atenção a apresentar a sucessão de ciclos pelos quais passou a criação e a evolução da Terra desde a aurora do tempo, segundo o que conta a cosmogonia dos dois troncos da vertente tupi, os Tupi-Guarani e os Tupinambá, uma mitologia condensada no que os indígenas chamam de Arandu Adakuaa, o “grande conhecimento do mundo”.
Para os tupis em geral, o mundo foi sucessivamente trabalhado e implementado pelo domínio, a cada ciclo exercido por um diferente Nanderu (pronuncia-se Nhanderu), uma divindade ancestral que tem controle sobre um canto do universo e um dos elementos primordiais da criação: água, fogo, ar e terra. Pela contagem apresentada por Jecupé no livro, estamos no quarto ciclo, o de Namadu (Nhamandu), o Nanderu da Terra. Antes, tivemos os ciclos de Jakairá, divindade do ar, do espírito e da neblina; o de Karai Ru Ete, do fogo e da luz; e o de Tupã, o senhor do raio, dos trovões e das águas. Ao fim de cada um desses ciclos, diz a tradição, parte da humanidade seguiu em busca da evolução necessária para que um dia a Terra cumpra seu grande propósito, os povos que vieram antes tendo legado aos que sobreviveram conhecimentos místicos e práticos para que o próximo ciclo avance mais.
É uma ideia que pode parecer por demais abstrata até que o próprio Werá Jecupé explica que não deixa de ser uma visão de mundo semelhante ao que hoje já se sabe cientificamente ter sido um longo tempo de evolução até a chegada do moderno Homo sapiens:
“No passado, era difícil compreender o conceito indígena de ancestralidade, mas hoje, com o reconhecimento científico de que o ser humano passou por vários estágios evolutivos até chegar ao homem, talvez seja mais fácil reconhecê-lo.”
Apagão e vibrações
Agora, o que realmente me deixou cabriolando as ideias sobre como às vezes o conhecimento metafórico dos povos ancestrais de algum modo parece oferecer uma visão bastante precisa de coisas que hoje compreendemos com os olhos da física foram as explicações divulgadas até agora para o apagão que deixou Portugal, Espanha, partes da França e até partes da Polônia no escuro durante esta semana.
Não foi ainda batido o martelo sobre as causas, a única explicação que foi dada oficialmente até agora foi “fenômeno atmosférico raro”, o que, em termos de astronomia, deve ser o equivalente a “virose” na medicina, a explicação mais à mão lançada para dar uma satisfação aos curiosos mesmo quando o profissional envolvido não tem a menor ideia do que está acontecendo de fato.
Mesmo com as incertezas, se fala que pode ter havido uma conjunção muito rara de fatores definida como Oscilação atmosférica induzida. O que vem a ser isso? Toda matéria é composta de moléculas que vibram. No caso específico do apagão, crê-se que o calor escaldante atualmente em processo no hemisfério norte começou a “vibrar” na mesma frequência que os cabos de alta tensão responsáveis pela iluminação dos países afetados. Segundo os especialistas, o fato de que geradores e satélites não foram drasticamente afetados não sugere que o motivo tenha sido algum tipo de atividade solar frenética ou mesmo ataque de forças externas, como também se conjecturou, então a explicação oferecida por enquanto é essa: as ondas de calor, tendo atingido por acaso a mesma exata frequência vibratória dos cabos, provocaram seu rompimento em larga escala.
Confesso que “vibrar na mesma frequência” é o tipo de papo que eu atribuo com algum horror a algum hippie lesado no décimo baseado do dia ou a alguma jovem mística de saia longa pondo cristais na banheira, mas sou obrigado a reconhecer que existe algo equivalente na física contemporânea, o que explicaria o fenômeno pelo qual notas específicas podem estilhaçar taças de cristal ou vidro. O que me fez pensar foi que essa explicação (apresentada, entre outros, pelo físico pop meio problemático Sérgio Sacani), mesmo se não for exata, parte de um evento físico real e já conhecido, mas às vezes pouco lembrado: o de que a matéria, toda ela, “vibra”. Não faço aqui a conexão com “flores e energias astrais” que a galera da empatia-paz-e-amor costuma trazer a qualquer pretexto, mas com outro tipo de visão de mundo bem comum aos indígenas e também apresentada pelo escritor Kaká Werá Jecupé em seu livro.
O tom do ser
Em A terra dos mil povos, Jecupé explica ao longo de várias páginas que a cultura dos indígenas parte do princípio de que tudo no mundo emite um “tom”, não apenas as palavras faladas, mas todo ser presente na Terra, até mesmo aqueles que nós, imersos na cultura do colonizador europeu, consideramos “inanimados” (palavra que não significa na origem “sem movimento”, como a entendemos, mas “sem alma”, o que a faria sem movimento. Há uma sutil diferença nessa etimologia, uma vez que a sociedade indígena antiga é “animista”, ou seja, atribui “alma” a tudo no mundo). Por isso, os rituais indígenas dão tanta importância ao transe pelo ritmo, à dança, à música, ao padrão repetitivo e hipnótico da percussão, como forma de afinar almas como se afinaria um instrumento, fazer com que o tom emitido por cada membro da tribo – e, no fim, pela tribo inteira – se harmonize com o tom de tudo à sua volta, numa espécie de sinfonia não apenas metafísica, mas física, uma vez que esse entendimento da vibração levou ao estabelecimento das vogais consideradas sagradas na linguagem do tronco tupi (a terra dos mil povos também as lista e apresenta, sugiro a leitura, se não ficou ainda claro até agora).
E aí me pego pensando que a física mais avançada conseguiu até agora nos dar uma visão muito próxima, ainda que com suas diferenças cruciais, de algo que os habitantes originais já sabiam antes da chegada das “grandes canoas do vento”, como Werá Jecupé chama as caravelas.
Fico pensando o quanto mais ainda teremos surpresas quando cada nova evolução da ciência nos levar para ainda mais longe de 1500…
Todos os textos de Carlos André Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: Kaká Werá Jecupé / Arquivo Pessoal