Em 1977, o Brasil ainda vivia sob a ditadura militar, mas já experimentava uma pálida abertura política iniciada pelo então o presidente General Ernesto Geisel. A moeda era o Cruzeiro, o divórcio havia sido regulamentado e ressurgia, mesmo que timidamente, o movimento estudantil e as greves.
Também em 77, a escritora Rachel de Queiroz foi a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras. O escritor baiano Jorge Amado lançava o romance Tieta do Agreste. Na TV, estreavam Os Trapalhões e Sítio do Pica-Pau Amarelo, dois programas que ficaram na memória.
Em 1977, eu tinha apenas nove anos, mas guardo memórias bem vivas daquele momento. Nasci em Brasília, no contexto da ditadura. Meu pai era civil, mas trabalhava na Presidência da República. Vivíamos em uma quadra militar com vizinhos generais e coronéis. Por outro lado, era neta, por parte de mãe, de um político de esquerda. Transitava, inocentemente, entre os benefícios do sistema da época, oferecidos pela posição do meu pai, e o conflito de ideias e ideais, frutos da convicção política do meu avô. Cresci ouvindo muitas histórias dos dois lados. Na escola, participava da Hora da Bandeira e tinha Educação Moral e Cívica, e por outro lado, em casa, ouvia histórias sobre familiares que tiveram que sair do país por causa da perseguição ideológica.
Brincava de “polícia e ladrão” no intervalo das classes e depois do almoço fazia os deveres de casa ouvindo Chico Buarque, Caetano Veloso, Elis Regina, entre outros. Gostava das melodias, mas pouco sabia sobre o peso crítico daquelas letras. Porém, o que eu sim, sabia, era que meu pai não concordaria com minhas escolhas musicais. A vitrola só tocava quando ele não estava em casa. Também dancei e cantei muito imitando as Frenéticas, especialmente o Dancin’ Days, com o ritmo contagiante de “abra suas asas, solte suas feras…. E leve com você, ê, ê, ê, ê, o sonho mais louco, louco, louco”!
Muitas memórias que carrego comigo desta época da minha vida são acompanhadas de música. Hoje, tenho a certeza de que, mesmo que com a inocência da idade, essas letras moldaram minha visão sobre a sociedade naquele momento e nos anos que vieram, aí sim já com um entendimento mais apurado do contexto em que foram criadas.
Uma das minhas canções preferidas era Tigresa, de Caetano Veloso. Aliás, acabo de lembrar que ele faz aniversário já na próxima semana, dia 7 de agosto. Por acaso, escutei a música um dia desses enquanto dirigia. Fiquei com ela na cabeça. Mais uma vez passei a refletir aleatoriamente sobre essa mulher que
“Conta que era atriz e trabalhou no Hair
Com alguns homens foi feliz, com outros, foi mulher
Que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor
E espalhado muito prazer e muita dor”
Não somente a mulher inspiradora de Caetano, mas na “mulher tigresa” que vive em cada uma de nós. Nessa canção, Caetano fala sobre uma mulher enigmática, liberta e sedutora. Transgressora e rebelde. Letrista primoroso, Caetano relatou um pouco do que acontecia no mundo na época, especialmente com os movimentos da contracultura e do feminismo, que ganhavam força naquele momento. A tigresa de unhas negras e íris cor de mel, fazia alusão às musas do cantor, mas era também o retrato de muitas mulheres que lutavam pelo seu espaço e pela igualdade de direitos. Lutavam pela possibilidade da Tigresa ser “mais do que o Leão“.
Estamos em 2023 e essa música ainda faz tanto sentido. Acredito que ainda temos, e ainda por muito tempo, teremos muito desta Tigresa enraizada em nós. Apesar de mais livres e com mais reconhecimento, ainda temos que lutar pelo nosso espaço, tanto internamente, desconstruindo a imagem feminina que incutiram em nós, como perante a uma sociedade que muitas vezes insiste em dizer que essa tigresa continua podendo menos que o leão. Porém, com garras de felina e besteiras de menina, seguimos em frente, acreditando no que profetizou Caetano: “… ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar
Porque ela vai ser o que quis, inventando um lugar“.