Os que me leem aqui já devem ter percebido que vira e mexe estou falando de como a cidade é usada como negócio em detrimento de seus valores históricos, simbólicos e culturais. Os imóveis, hoje, são um ativo financeiro importante na economia do mundo capitalista. São usados como poupança, investimentos ou matéria-prima para o que se convencionou chamar de indústria imobiliária. Não confundir com construção civil, que é outra coisa. Construção civil é o serviço usado para viabilizar edifícios como uma fábrica de geladeiras precisa de sua linha de montagem. Nós, os cidadãos, somos os consumidores dessas moradias agora vendidas como produtos industriais. Isso traz consequências.
Como toda indústria contemporânea, ela fabrica desejos, se propõe a preencher vazios existenciais que todos carregamos, não há como escapar. Assim como há lançamentos anuais de automóveis, a indústria imobiliária faz a mesma coisa. Sem querer a gente começa a achar que está na hora de nos mudarmos para algo mais condizente com a contemporaneidade, com mais tecnologia e que vai nos deixar com aquela carinha de felicidade do casal da publicidade na beira da piscina do condomínio. Irresistível!
Pode-se ganhar muito dinheiro construindo para vender. Nada contra, é o negócio de quem vive disso. Sou contra quando o interesse financeiro dessa indústria começa a ter autoridade no planejamento da cidade, quando ganha assento nos principais conselhos de desenvolvimento urbano, quando prefeito e vereadores defendem esse papel pelo potencial de gerar empregos, riquezas. A partir desse momento, a preocupação com a qualidade de vida dos cidadãos que os elegeram passa a ser secundária. É como se a governança municipal fosse uma Anvisa dominada por laboratórios. Pode?
A cidade deveria utilizar a construção civil em função de suas demandas e, portanto, os empregos seriam gerados na medida adequada, necessária. Enquanto serviço, nós é que deveríamos dizer o que queremos ver construído. Infelizmente não é o que tem acontecido nas cidades brasileiras. Todos os dias, casas e prédios de bairros tradicionais são demolidos para construção de novos cada vez maiores. O argumento é que os terrenos nesses lugares valem muito, é preciso rentabilizá-los – uma obsessão capitalista, onde tudo tem valor de mercadoria.
Você que viveu a vida toda na mesma casa de repente se sente um otário se não transformar seu terreno em muito dinheiro. A casa em si já não vale nada vão lhe dizer, vai ser demolida. Você fica atônito – minha vida! –, mas vê que as casas dos vizinhos já foram abaixo. É pegar ou largar, ficar espremido entre dois edifícios. Não seja bobo. Você se conforma e começa a pensar em como vai ser boa a vista do décimo andar e ainda desfrutar do rooftop confraternizando com os condôminos.
Mas que mágica é essa que faz com que a casa de minha infância, até bem simples, passe a valer ouro para o mercado imobiliário? Não tem mágica, a valorização é progressiva e vem do trabalho coletivo, privado ou público. Um vizinho fez uma padaria, a prefeitura botou uma linha de ônibus que passa na esquina e assim por diante até que você está no meio de uma zona super valorizada. Deu sorte, vão lhe dizer. Não. Foi só o que os economistas chamam de apropriação privada do investimento social. A prefeitura até aumentou o IPTU, mas foi irrisório diante do que você passou a ganhar potencialmente se vender o imóvel. Chegou a hora!
Esse processo tem dinâmica própria, para minorá-lo só tem uma saída: estabelecimento de índice de aproveitamento dos terrenos equivalente a 1 (em um terreno de mil metros quadrados se constrói mil metros quadrados no máximo) e reforçar estruturas de planejamento distantes dos interesses da indústria imobiliária. Equipes de alto nível, incluindo universidades definiriam onde acham conveniente a aplicação de índices de aproveitamento maiores, longe dos bairros tradicionais, para viabilizar, por exemplo, eixos de transporte públicos de alta eficiência. Curitiba fez isso.
Agora, de onde vem o valor dessa terra urbana? Quando a gente pesquisa na internet o preço de um hectare de campo no Brasil a gente leva um susto: 22 mil reais em média. Como é barato! Daria para fazer 30 lotes a menos de mil reais. E é o que se fazia no Brasil antes da lei 6766, de 1979. Muitas das grandes fortunas de São Paulo nasceram assim. Bastava gastar com topógrafo e trator para abrir acesso aos lotes. Depois os primeiros moradores faziam com que a prefeitura levasse água, luz e muito raramente asfalto, ônibus. Vide a imensa periferia de São Paulo sem uma única pracinha aqui ou ali. A ganância não tem limites a não ser que seja impedida.
A diferença de valor entre o terreno rural e o urbano, depois da lei redentora de 79, está nas benfeitorias que agora devem ser feitas de forma obrigatória e nas que foram fruto do desenvolvimento da comunidade instalada ali, o tal do investimento social. Uma regra de oferta e procura que não tem como mudar. Quanto mais o lugar vai ficando atraente mais pessoas querem habitar ali e o modo de conseguir isso, sabemos, é oferecer dinheiro suficiente para amolecer corações.
Entretanto, na composição do preço do terreno tem um parâmetro que foge do mercado da oferta e procura: o índice de aproveitamento. Quando eu aumento esse índice de 1 para 2 o terreno dobra automaticamente de preço, porque o que se vende não é terra para plantar, mas os m² que estarão em cima dela. Quem controla esse índice é a prefeitura com a Câmara de Vereadores, ávidos em busca da simpatia das incorporadoras imobiliárias. Se realmente a prefeitura quisesse proteger o patrimônio histórico, por exemplo, seria muito simples, é só fazer com que não valha a pena demolir para construir algo do mesmo tamanho. Simples, não?
O Plano Diretor de Porto Alegre de 1979 usou desse recurso para diminuir a altura das edificações e o índice de aproveitamento. A altura máxima em alguns centros de bairro alcançava 8 pavimentos, mas na maior parte da cidade não passavam de dois ou quatro. Não é preciso dizer que o valor dos terrenos em Porto Alegre despencaram, passaram a ser relativamente os mais baixos do Brasil. O servidor público e arquiteto Moacyr Moojen Marques liderava uma equipe de alto nível (PROPLAN) em comunhão com a UFRGS. O planejamento dessa cidade nunca mais voltaria a ser feito com a mesma qualidade que eles fizeram.
O legado do Parque Marinha do Brasil, do Largo dos Açorianos e do Parcão, para dar alguns exemplos, mostram que planejar bem dentro da prefeitura é possível, basta valorizar quem sabe fazer e afastar interesses de outra ordem. Não é preciso dizer que de lá para cá esse plano foi sendo minado até chegar ao desastre do plano de 1999, liderado pela indústria imobiliária, do qual somos herdeiros até hoje. Desastre para nós cidadãos, regozijo para a indústria imobiliária que agora avança ainda mais ao furar o teto da cidade. Nem o céu põe limites.
Foto da Capa: Eduardo Aigner / Divulgação