“Anda com fé eu vou…” certeza que você completou e ouviu a melodia aí, chegou a dar um balancinho de corpo, tipo aquele cachorro do meme que se balança de olhos bem fechados. Isso me leva pra outro meme, da menininha que faz uma ioga de paz, olhinhos fechados também, no balanço, só que um pouco mais devagarinho ainda.
Olhos fechados, isso me remete a um mergulho, a um olhar “para dentro”. Concentração, reza, fé. Fé? Pronto, pessoal eu sou uma fraude. Falei, tô leve. Até fui ver na wikipedia: “Fé é a adesão de forma incondicional a uma hipótese que a pessoa passa a considerar como sendo uma verdade sem qualquer tipo de prova ou critério objetivo de verificação, pela absoluta confiança que se deposita nesta ideia ou fonte de transmissão.”
Vamos por partes, “adesão de forma incondicional”, você tá maluca(o)! Me recuso a aderir de forma incondicional a qualquer coisa, seja física, seja espiritual, seja hormonal. Não consigo. Sou cria do meu tempo gente, geração X, ali coladinha na baby boomer. Nossas mães fizeram o movimento hippie e o woodstock, depois procriaram, deixaram os filhos na frente da TV e foram para a rua trabalhar. Sou de um recorte geracional que se caracteriza por criticar regras das gerações anteriores, ter maturidade e autonomia, não acreditar em Deus, não gostar da realeza britânica e esperar o casamento para ter relações sexuais. Triste esse último item, né? Enfim, não assinamos nada incondicionalmente, ponto.
Porém, tem uma parte que faz todo sentido: “…hipótese que a pessoa passa a considerar como sendo uma verdade” e paro aqui porque esse ponto é crucial no que quero contar para vocês.
Minha verdade: minha mãe, que me criou, que me amamentou, ela tinha superpoderes! E meu pai também. Tudo começa com o sopro dele na minha mente, para o meu “Ori”¹: “Minhas negras vão ser doutoras!”. Ele falava isso sempre, sorriso de orelha a orelha, olhando nos nossos olhos com orgulho, como se já fossemos doutoras. E nós nos sentíamos doutoras. Apesar de não ter o que comer à mesa. Estávamos doutoras, naquele exato minuto, naquele espaço-tempo, naquele sopro de orgulho e de profecia autorrealizável expelido pelo meu pai que falava diretamente às nossas almas, aos nossos orixás.
É interessante pensar sobre a fé. É tipo, “o que vem antes, o ovo ou a galinha?”. Na definição da internet tem essa partezinha: “sem qualquer tipo de prova ou critério objetivo de verificação”. Oi!? E os milhares de relatos de milagres gente? E a água da ave maria das 18 horas? E a rosa ungida? E a oferenda na encruzilhada, que resolve várias variáveis? Tô lendo o que escrevi e rindo por dentro aqui. Risos. É muito contraditório ser racional e ter fé né!?
Eu já tive fé. Muita fé, na fé da minha mãe. Ela me ensinou a rezar o terço, sei todo, com todos os mistérios, dia da semana… gozosos, dolorosos, gloriosos… luminosos não, recém-criados, muito modernos pra gente. Mas, desde sempre, assim como meu pai me fez doutora, ela me fez acreditar que eu podia qualquer coisa. Inclusive, abre parênteses…segundo teorias conspiratórias, sou meio megalomaníaca até hoje por causa dessa super carga de confiança insuflada por ela…fecha parênteses.
Minha mãe me deu provas objetivas sobre a fé, minha mãe era uma yabá² e nem sabia, criada que foi na religiosidade eurocêntrica. A primeira prova que tenho memória, devia ter uns 9, 10 anos: estávamos ameaçados de despejo vindos do interior, depois de passar necessidades por 5 anos em Canoas. Ela pegou a gente (eu e meus dois irmãos pouco mais velhos), começou uma novena conosco e disse: “No final dessa novena estaremos em outra situação”. O nono dia foi rezado no imóvel próprio e que vivemos até hoje, em Viamão. E depois disso, nunca mais fiz nada importante na minha vida, do prestar vestibular ao lançamento dos meus negócios, sem rezar um terço.
Porém, a minha fé está falhando. Este ano, nesta semana que escrevo, está fazendo 10 anos que minha mãe se juntou às nossas ancestrais. Antes, quando rezava, sentia ela sentada ao meu lado, rezamos juntas. Não sinto ela mais tão presente quanto antes. Me senti só, me senti sem fé. E sonhei, sonhei com ela me olhando nos olhos, me desafiando e sorrindo debochada. Sim, minha mãe tinha um senso de humor absurdo. Ali, no meio do deboche dela, descobri uma coisa incrível: não é a fé que falha, é o “como” praticamos a fé que falha.
Meu pai instilava fé pela palavra, minha mãe pela prática, tem gente que pratica, vê, através da leitura do “Segredo” ou entoando mantras, sei lá. Pessoal, sou fraude não. Eu praticava a fé pela referência. Eu tenho fé. Eu acredito em energias que nos animam, eu acredito no duplo, eu acredito em anima (alma).
E, como afrofuturista, entendo que a fé é algo físico, palpável, alcançável por todos os sentidos. Arrepiamos, sentimos gostos…esses dias senti um cheiro de baunilha, doce, maravilhoso, no meio do nada. A fé permeia nosso dia a dia, ou melhor, a fé dita a forma como vemos o mundo, manipula o “como” nos relacionamos com o espaço-tempo do acordar ao dormir, do primeiro ao último respiro. Pena que não criamos ferramentas para mensurá-la… ainda!
E você…sua fé não costuma “faiá”?
Foca no “Como”. #ficaadica
Laroyê, Exú
¹ Ori, em iorubá, quer dizer “cabeça” e, ao mesmo tempo “destino pessoal”. Nossa cabeça, na filosofia iorubá, é o correspondente físico ao nosso destino pessoal, que é uma parte muito importante de nossa vida espiritual.
² A palavra “yabá” se origina provavelmente em “ayabá”, que em iorubá significa “rainha”. No Brasil, “yabá” é frequentemente usada para se referir aos orixás femininos e a ancestrais femininas veneráveis.