Todo mundo sabe, ou quase, que o planejamento começa por um diagnóstico. Claro, antes do diagnóstico é preciso que um sintoma seja percebido. É ele que dispara a necessidade de que alguma coisa precisa ser estudada para que se chegue à solução do problema. Isso se de fato encontrarmos ali um problema e for possível achar uma solução para ele.
Esse é o dia a dia dos profissionais que trabalham com a ciência, seja nos laboratórios, consultórios e escritórios de muitos tipos. E também nos gabinetes de planejamento das cidades. Só que aí as coisas ficam mais complicadas. Como conhecer o território e detectar os sintomas de um incômodo urbano? Como dimensioná-los para se chegar a um diagnóstico?
Muitos vão dizer que os sintomas são tão evidentes nas cidades brasileiras que é uma bobagem o que estou escrevendo aqui. Verdade. Só que a doença urbana brasileira é tão antiga e está num estágio tão avançado que as instituições políticas já não fazem distinção entre doença e hábito. E são os políticos os que demandam trabalho aos planejadores. Enquanto não demandam, a cidade em estado terminal vive de paliativos para um mal que não é reconhecido.
Já escrevi aqui que nossas cidades são um arquipélago, um conjunto de ilhas que selecionamos para viver o nosso dia a dia. Vamos de uma para outra com nossos carros ou ubers como se fossem os vaporetos de Veneza. Eu, possivelmente você que me lê e os políticos que nos governam, chamamos de Porto Alegre um conjunto de bolhas mais ou menos comuns que generalizamos como sendo a cidade. Não é. Existem outras bolhas, muitos conjuntos delas que formam muitas outras cidades para outras pessoas. Todas ocupam, em conflito permanente, o mesmo território. Os conflitos são amortecidos por segurança pública e privada ofensivas, essa é uma das doenças.
No caso de Porto Alegre, conhecer o território não é o problema. Ele está minuciosamente mapeado no Atlas Ambiental, resultado do monumental trabalho da equipe coordenada por Rualdo Menegat, transformado em livro em 1998. Ali tem tudo, da geografia à flora e fauna. É minucioso, exaustivo. O sonho de consumo de qualquer planejador sério.
O que não se tinha é um levantamento humano, social, que identificasse os modos de viver na cidade, as dificuldades e facilidades do dia a dia nas diferentes ilhas que formam nosso arquipélago – esse nosso é geral, abrange todas as ilhas da cidade. Que apontasse os sintomas necessários para a formulação dos diagnósticos de cada área de atuação dos serviços públicos: habitação, transporte, segurança, cultura, educação, etc.
Agora temos. Falo do livro de crônicas de José Falero Mas em que Mundo Tu Vive? É a mais completa radiografia de como o porto-alegrense vive. Abrange todas as ilhas, bolhas e apartaides que coabitam esse território às margens do Guaíba. Serve também, com uma adaptação às diferentes geografias, para a maioria esmagadora das cidades brasileiras.
Quer saber da lotação dos ônibus? Está lá. Dos horários que passam e não passam (mais frequente)? Está lá. Geração de emprego e renda? Acesso à educação e cultura? Política de segurança pública? Habitação, saneamento? Tudo isso e muito mais está minuciosamente descrito com humor e poesia até nas situações mais dramáticas. Os sintomas são tão evidentes e gritantes que nem é preciso muito esforço para se chegar ao diagnóstico: a doença chama-se racismo e preconceito.
Foto da Capa: Mário Fontanive / Divulgação
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