Há alguns dias, uma colega advogada teve de chamar a polícia porque uma mulher, ao fugir de um homem que a perseguia com uma faca na Praça Júlio, movimentado local de Porto Alegre, que fica entre o Moinhos de Vento, o bairro Independência e o Bom Fim, bairros densamente povoados e de classe média bem situada, pediu socorro. Minha colega chamou a polícia e ficou na porta do seu edifício esperando pela polícia que nunca apareceu.
Quinta ou sexta-feira passada, à tarde, em plena luz do sol, uma mulher, aos berros, provavelmente moradora de rua, saiu correndo da Praça Júlio, se arriscando a ser atropelada, porque um homem na Praça Júlio estava tentando esfaqueá-la, e veio em nossa direção. Vi que ela conseguiu fugir momentaneamente. Não consegui ver o agressor.
Na última quinta-feira (27) à noite, por volta das 18h, enquanto trabalhava na minha sala, ouvi gritos em desespero de um homem berrando que iria ser assassinado. Fui para a janela e vi de costas dois homens o perseguindo, um com uma faca que parecia ser de cozinha e outro com dois paus de madeira com pregos, e parecia haver um gancho no outro. O homem atravessou a Ramiro Barcelos, quase na altura da Independência 1107, em frente ao Edifício Esplanada, pulou por dentre as folhagens que impedem o acesso dos pedestres à calçada, correu poucos metros e foi dominado pelos criminosos que tentavam assassiná-lo. Caído no chão, ao lado de uma banca de flores, em frente à farmácia Panvel, eu já não podia vê-lo, mas pude escutar seus gritos enquanto era esfaqueado e levava marretadas com pregos. Os gritos foram ficando cada vez mais fracos.
Enquanto eu procurava meu celular, da janela do meu quarto, que tem vista frontal para a Praça Júlio, vi os dois criminosos, de costas, caminhando calmamente, como se fossem a um bar, atravessando a Praça Júlio em direção ao mercado Vital, antigo Ribs, com a tranquilidade de quem conta com a certeza da impunidade. Todavia, as árvores não permitiram que eu visse a direção que tomaram mais adiante. Imagino que foram para a rua Mostardeiro.
Nervoso, não consegui localizar meu celular por uns 10 minutos, mas, quando consegui encontrá-lo, liguei para a polícia, que já havia sido avisada, e fui informado de que os policiais já estavam a caminho. Do meu apartamento, vi que havia pessoas em torno da vítima. Gritei, perguntando se estava vivo. Milagrosamente, a vítima, segundo informado por algumas pessoas, ainda respirava. Pensei em chamar a SAMU, mas como ainda não faz dois anos que voltei a morar no Rio Grande do Sul, não sabia qual era o número, mas lembrei que alguém me falou que a prefeitura tem um número de telefone geral, o 156. Liguei para o 156, que me informou que o número correto é o 192, e me transferiu para o SAMU. Narrei que uma pessoa havia sido atacada a facadas e marretadas com pregos, que estava morrendo, se esvaindo em sangue. A resposta do atendente foi de que não poderia sair nenhuma ambulância enquanto a polícia não chegasse ao local e a chamasse. Vale dizer, o chamado de um cidadão, por telefone, no meu caso advogado, e que daria todos os meus dados de identificação, não seria o suficiente. Pela SAMU, só é possível salvar a vida de alguém se a polícia efetuar o chamado. Nisso chegou a polícia, desci, e fiquei esperando pelo SAMU que demorou uma eternidade para quem vê uma mancha de sangue se espalhando pelo chão e alguém respirando muito mal.
Comentei com a polícia que eu havia chamado o SAMU e a resposta que tive do policial foi que “agora eles inventaram isso”. Eu estava tão indignado que fiquei com o meu celular a postos para filmar o momento em que o SAMU chegou, para ter um registro do horário do início do atendimento médico. Conforme registrado em vídeo que fiz com o meu celular, foi às 19h42min. Comentei com um senhor que eu havia ligado para o SAMU às 18h18min, e ele me disse e me mandou o “print” da chamada dele, efetuada às 19h15min, e que recebeu a mesma resposta.
Sou filho de médico e cresci vendo meu pai dizer da importância do imediato socorro, que se a pessoa perder muito sangue, poderá morrer.
O Código Penal estabelece como crime de omissão de socorro:
Art. 135 – Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único – A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.
Todavia, o Código Penal estabelece no parágrafo 2º do artigo 13 a “Relevância da omissão”:
§ 2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
Conforme consta no renomado Curso de Direito Penal, parte geral, volume 1, de Rogério Greco, páginas 292 e 293, o dever de agir apontado nas alíneas do §2 do art. 13 do Código Penal, é considerado na definição de Sheila de Albuquerque Bierrenbach, um dever especial de proteção:
“Dever específico, imposto apenas ao garante. Diverso daquele outro dever nascido, de forma imediata, da norma preceptiva, contida na Parte Especial do Código, que obriga a todos indistintamente. Desse modo, à luz do art. 135 do estatuto penal, que tipifica a “omissão de socorro”, cabe a todos cumprir o mandamento legal, agindo para evitar o tentar que o perigo que ronda o bem jurídico protegido pela norma efetive-se, transformando-se em dano. Trata-se, pois, de dever genérico de proteção.”
Muito bom o exemplo apresentado por Rogério Greco, referente à posição de garantidor e suas consequências:
“Imaginemos o seguinte: durante a madrugada, determinada pessoa é baleada e, logo em seguida, conduzida a um pronto-socorro, vindo a ser recebida pelo médico de plantão. O médico, na condição de garantidor, faz tudo o que estava a seu alcance a fim de salvar a vida da vítima que, em virtude da gravidade dos ferimentos por ela sofridos, não resiste e vem a falecer. Nessa situação, não podemos atribuir o resultado morte ao médico que prestou o necessário atendimento, uma vez não ter ele se omitido, assim agido de acordo com as imposições legais.
Agora, no mesmo exemplo, suponhamos que o médico, mesmo sabendo da gravidade do fato, seja negligente no atendimento, vindo a fazê-lo somente poucos segundos antes da vítima morrer. O resultado morte poderá ser imputado ao profissional que negligenciou no atendimento, pois sua posição de garantidor impunha que atuasse hábil. Como não agiu, mesmo devendo e podendo fazê-lo, deverá ser responsabilizado pelo resultado, a título de culpa.”
Este artigo foi escrito logo após o evento e não sei se a vítima sobreviveu, se está bem ou mal, mas o fato é que essa demora na prestação do socorro, em razão da decisão de alguém, de que mesmo que o SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) esteja ciente de que alguém está gravemente ferido, sangrando muito, prestes a morrer, as ambulâncias só podem sair depois que a polícia chegar, confirmar a notícia e pedir socorro, é perigosíssima e vergonhosa! Isso pode custar a vida de muitas pessoas, vai além da negligência administrativa, pois está sendo assumido institucionalmente o risco de que essa pessoa morra ou tenha a sua saúde extremamente prejudicada em razão da falta de socorro imediato ou do atendimento tardio. Será que quem tomou essa decisão no SAMU não consegue ver a possibilidade de que esse tempo perdido pode gerar um resultado danoso, o que caracteriza até mesmo o dolo eventual? Espero que essa atual prática do SAMU seja revertida com a urgência que não houve na prestação do socorro.
Imagino que a polícia já saiba quem foram os criminosos que tentaram cometer esse assassinato, pois a vítima foi atacada bem no campo de visão de uma das câmeras de segurança do Edifício Esplanada, e o vídeo do crime já está rodando por WhatsApp. Além disso, ouviam-se comentários de que os criminosos poderiam fazer parte do grupo de pessoas que dorme na praça Júlio e adjacências. Tudo indica que sim, mas não tenho como saber se isso procede e quem são.
Segundo publicado no site da Revista ISTOÉ, em 18 de fevereiro de 2025, Porto Alegre é a 23ª cidade mais perigosa do mundo.
Moro neste bairro de classe média alta, para os padrões de Porto Alegre, mas raramente vejo um policial. Em janeiro, enquanto almoçava em uma lancheria em frente à Santa Casa, na Avenida Independência, ouvi um senhor gritando que havia sido assaltado e percebi uma correria na rua. Depois, caminhei uma boa distância até chegar em casa, e não vi sequer um policial. Fiquei muito contente quando o Hospital Moinhos de Vento (HMV) forneceu um local para a polícia ficar no Parque Moinhos de Vento. A instalação está lá, linda, com o nome do HMV nas paredes, mas na maioria das vezes que passo por lá, e atravesso o parque com frequência, raramente vejo um policial. Imagino que não haja policiais suficientes para ficarem à disposição em um único local por muito tempo.
Vale lembrar que, de acordo com o artigo 144 da Constituição Federal, ‘’a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I – polícia federal;
II – polícia rodoviária federal;
III – polícia ferroviária federal;
IV – polícias civis;
V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.
VI – polícias penais federal, estaduais e distrital.”
Como se percebe nas ruas, inclusive pelo fato de a cidade ser considerada a 23ª cidade mais perigosa do mundo, nosso direito constitucional à segurança pública vem sendo muito negligenciado. Os gritos da vítima chamando pela polícia e dizendo que eles iriam matá-lo não serão esquecidos tão facilmente, tampouco a minha percepção sobre a atual administração do Estado do Rio Grande do Sul e do Município de Porto Alegre. Se o Estado do Rio Grande do Sul não tem efetivo para oferecer uma segurança pública razoável, que se peça uma intervenção federal, não nos deixe à mercê dos criminosos, e QUE DEUS NOS SOCORRA!
Todos os textos de Marcelo Terra Camargo estão AQUI.
Foto da Capa: Reprodução