Nos anos 20, quando se defendia a antiga URSS, não era pela possibilidade de se ter um carro ou uma geladeira, dizia Lukács, mas porque ali se estava construindo um Homem Novo. Já nos anos 30, diz Comte-Sponville, quando se falava (na Europa) de “solidariedade na luta”, em nome de certas causas como a Liberdade, algumas pessoas pegavam em armas e iam combater ao lado dos republicanos na Guerra Civil Espanhola, onde muitos deixaram suas vidas. Hoje, quando se fala em solidariedade, deixamos 1 kg de alimento em algum depósito e voltamos para casa com a alma tranquila!
Aliás, por falar em Homem Novo (uma ideia que atravessou o espectro político da extrema direita à extrema esquerda!) – aquele Homem dotado de consciência moral pós-sociedade de classes e, finalmente, reconciliado com sua própria “humanidade” -, Hans Jonas (“O princípio responsabilidade”) dizia que, “se depois de 2.500 anos de História, ele ainda não apareceu, é porque não virá mais!”
Estas observações servem para examinar esta repetitiva convocação de nossas esquerdas para a “luta”, em geral, contra decisões ilegítimas ou em função da supressão de direitos: luta reativa! Considero tudo isso justo, mas diante do esvaziamento das ruas e da visível apatia política, precisamos refletir sobre essa “convocação para a luta”. A pergunta é simples: numa época caracterizada por um “crepúsculo do dever”, qual o alcance moral do apelo para a luta? Falo, aqui, de uma hipotética relação entre certa eticidade e uma política de esquerda, que talvez ajude a pensar a apatia de nosso tempo.
Se certas palavras de ordem como “pátria”, “liberdade”, “opressão”, “igualdade”… exerciam forte poder mobilizador, exigindo um sacrifício que estávamos dispostos a pagar, este poder visivelmente enfraqueceu: fora os militares, ninguém está mais disposto a pegar em armas pela “Pátria”! Tal poder associava-se a uma moralidade centrada no “Dever”, numa moral do desinteresse e da universalidade: eu não agia pensando em mim mesmo, mas a partir de princípios que eu desejava aplicáveis a todos os homens, sem os quais teríamos dificuldade de nos concebermos como “Homens”! Dá para perceber que o problema está em conciliar uma moral do sucesso e do prazer privados, típicas de nossa subjetividade neoliberal, com exigências políticas para a realização de um Bem coletivo maior. Aqui, a famosa Fábula das Abelhas de Mandeville não funciona: o vício pessoal não concorre para a virtude pública!
Houve a Primavera Árabe, o Occupe Wall Street, o Passe Livre, a Nova Frente Popular na França, o Black Lives Matter nos EUA… para contradizer o argumento da apatia. Mas são os estertores de uma relação entre moral e política: nossa esquerda apela para uma consciência ético-política que está desaparecendo e não se dá conta de que as novas formas de opressão não passam só pela… “consciência”, onde se depositam nossas esperanças de transformação social. E isso, a Direita percebeu perfeitamente e sabe manipular afetos através de redes sociais como nunca se fez antes (mas cujo experimento inicial se deu no Nazismo, com os Volksradium, o cinema de propaganda e aquilo que Benjamin chamou de “estetização da política”). De resto, fica uma esquerda imprensada entre a falência conceitual e o anacronismo moral.
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