Eu em casa, domingo, 8:30 da manhã, um dia lindo de sol em Porto Alegre e escuto uma interação de vozes em tom um pouco mais elevado do que seria esperado para aquele horário. Dirijo-me à janela e chego no exato momento em que um assalto acontecia. Duas mulheres sendo retiradas de seu carro por dois homens, empunhando armas. A beleza e o silêncio daquele domingo contrastavam com aquela cena que, infelizmente para mim, já era familiar.
Paralisei naquele instante de dúvida, com o show da vida ali, acontecendo em tempo real. Não foi possível fazer nada além de permanecer como espectadora passiva daquela cena até que ela se desenrolasse e eu visse aquelas duas mulheres se abraçando sozinhas na rua depois que o carro dela partiu com aqueles dois homens levando absolutamente tudo que era seu. Não sabia se gritava alguma coisa da minha janela ou se qualquer grito que assustasse os assaltantes poderia causar alguma tragédia ali, já que havia armas de fogo envolvidas. Em seguida, moradores dos prédios foram chegando para acolhê-las e eu, já sabendo que estavam sendo cuidadas, voltei para minha sala com aquele sentimento de impotência pulsante dentro de mim. O prédio ao lado também estava com suas janelas-arquibancadas com vários espectadores, como eu, olhando o cenário todo e conversando entre si. Talvez algo do tipo “que horror, aqui na frente!”, ou então, “Tá complicado, né?” ou quem sabe “Mais uma vez!”
O vídeo das últimas semanas que viralizou nas redes sociais foi o da criança barrada para entrar na gravação do programa da Xuxa gritando, indignada: “Que show da Xuxa é esse? Que show da Xuxa é esse?”. É a fala do momento, e foi nela que pensei quando a cena do assalto se desenrolou diante de mim, quando me vi ali impotente, vendo tudo em tempo real e, em seguida, voltando às minhas atividades dominicais e vendo os vizinhos naquele mesmo torpor.
Que show é esse que se desenrola aos nossos olhos e que já nos encontra como espectadores quase resignados em nossa impotência e limitação? Lembro vividamente da minha sensação nas duas vezes em que sofri assaltos ao entrar no meu carro. Numa delas, sendo “fechada” com o carro em movimento por outro que vinha com assaltantes. Para além do choque no momento em que ocorre, o pós, quando o carro parte nas mãos de outros, os pneus derrapando, a vítima vendo absolutamente todos os pertences pessoais partindo junto, contando apenas com as vestimentas e (com sorte) o corpo intacto, aciona-se de imediato uma sensação de vazio, de não saber nem por onde começar. Lembro-me que em uma das vezes senti um estranhamento por ter que lembrar de cor o telefone do meu namorado de então para poder chamá-lo para me ajudar com o telefone de outra pessoa, já que o meu já não era mais meu.
Esse show da Xuxa que estamos vivendo não é para amadores. Eu, uma criança nascida ao final da década de 70, fui talhada pelo programa. Cresci desejando ser Paquita. Agora, estamos diante de um documentário sobre elas, as assistentes de palco da apresentadora – inclusive de onde foi extraído o vídeo da pequena fã revoltada que viralizou – revelando abusos e uma vida bastante diferente daquela imaginada e tão sonhada por meninas comuns como eu. No meu imaginário, sonhava em andar na nave na qual Xuxa chegava e partia, sonhava mais ainda em um dia participar do programa e poder tomar o café da manhã que ela servia em cena, sempre chamando uma criança da plateia que poderia escolher o que quisesse para comer. Sonhava em ser sorteada (mesmo nunca tendo enviado carta alguma para o programa) e também em poder responder à clássica pergunta dela “Vai mandar beijo pra quem?” com a também célebre frase: “Para minha mãe, para o meu pai, e para você”.
Acontece que a gente cresce e descobre que de fato a vida não é mesmo o show da Xuxa. A vida é esse assalto de realidade na nossa janela num domingo de sol às 8:30 da manhã. Isso não precisa ser necessariamente ruim. Pode-se aprender a viver com menos ilusão e mais cuidado – mas nem por isso, mais desesperançosos. Pode-se aprender a viver olhando mais ao redor, atento às ameaças, que infelizmente são constantes. Sei que não deveria, que não é justo precisarmos olhar ao redor e cogitar que podemos ser assaltados no domingo de manhã. Não vou nem entrar na questão social envolvida nesse cenário triste de desigualdade e miséria em que nos encontramos. Ao invés disso, penso aqui no cenário interno que vamos construindo à medida que nos desenvolvemos. Que repertório vamos compondo para enfrentar o mundo e descobrir que o show acontece por detrás das câmeras, por detrás do Instagram, dos vídeos que viralizam e até mesmo dos assaltos que sofremos.
Desliguemos as tevês, as telas, liguemos nossos radares (internos e externos) mas, por favor, sem perder a ternura jamais.
Foto da Capa: Freepik
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