Não sei se vocês sabiam ou se ao menos se importam, mas estreiam nesta semana nos serviços de streaming duas produções que elevam a aposta das possibilidades de adaptação para obras de fantasia na TV: Os Anéis do Poder, história derivada da série O Senhor dos Anéis, de J.R.R.Tolkien, e Sandman, adaptação das histórias com as quais Neil Gaiman, a partir dos anos 1980, ajudou a mudar o panorama da mídia quadrinhos e de seu potencial como arte narrativa. Para além de seus possíveis méritos e qualidades (sobre os quais, sendo bem sincero, sou um pouco cético pelas prévias que vi), essa circunstância tem proporcionado algumas oportunidades de boas reflexões mais aprofundadas sobre as tênues relações contemporâneas entre estética e consumo, entre arte e entretenimento, e como essas fronteiras borradas, ao contrário do que defendem muitos entusiastas, tem contribuído muito pouco para o estabelecimento de um cenário crítico consequente.
Embora as ferramentas de marketing sejam tão antigas quanto qualquer produção audiovisual (o teatro tinha cartazes e anúncios com ilustrações pagos em gazetas antes mesmo da invenção do cinema. Os trailers de filmes surgiram já na segunda década do século XX, e assim por diante), foi com a combinação de diversas instâncias da moderna tecnologia digital que as coisas chegaram ao atual panorama. Com a possibilidade de qualquer usuário ter acesso a qualquer momento a material promocional de alguma produção, trailers hoje são marqueteados como um evento eles próprios, e não como uma prévia de uma atração maior. Ao ponto que hoje em dia tem a inacreditável contagem regressiva para o teaser do trailer, com uma indústria inteira de lives e comentários de uma hora analisando cada mínimo aspecto de um vídeo de dois minutos e meio.
Antes, a forma de um fã de qualquer coisa estar por dentro do andamento de uma produção de seu interesse, ainda mais no Brasil, era por meio da mídia especializada, normalmente revistas. Hoje, qualquer um em qualquer lugar já está sabendo no momento seguinte sobre todas as escolhas realizadas durante a adaptação de uma produção para o cinema ou a TV. Como cada leitor tem na cabeça uma ideia diferente de como fazer um filme sobre algo que gosta, e qual deveria ser a tradução visual do que ele leu nos livros ou mesmo nos quadrinhos, onde há um ponto de partida visual a ser seguido, isso é receita certa para o desastre, com hordas unidas em sua indignação contra a “traição ao espírito da obra”, sendo que muitas vezes o próprio entendimento do que seria esse espírito é discutível.
O autor
Neste texto, preferi me concentrar no caso de Sandman porque ele tem um diferencial em relação à série derivada de O Senhor dos Anéis. Ambas contam com um fandom apaixonado, que tende a se levar por picuinhas e filigranas na discussão do “cânone” das duas obras e são, também, marcos de seus respectivos gêneros. Mas apenas no caso de Sandman é possível analisar outro elemento curioso da relação entre leitores e obra turbinada pela modernidade digital: a proximidade com o autor. Tolkien morreu em 1973. Neil Gaiman não apenas está vivo como mantém uma intensa vida digital, com interação contínua com fãs e outros artistas nas redes sociais, em especial em sua conta de Twitter. Logo, é um autor que ainda intervém (e o faz continuamente) na recepção da própria obra e nas opiniões de seus leitores sobre qualquer adaptação.
Gaiman nasceu em 1960 na cidade de Portchester, na Inglaterra. Trabalhou como jornalista no início da carreira, mas, depois de se aproximar do também escritor britânico Alan Moore, à época já famoso pelo que andava fazendo com a série do Monstro do Pântano, da DC, passou a escrever roteiros de HQs. Logo chamou a atenção do hegemônico mercado americano, que importou nos anos 1980 muitos artistas das ilhas britânicas, como o próprio Moore, Brian Bolland, Steve Dillon, Peter Mulligan, Dave Gibbons e Dave McKean, parceiro de Gaiman no primeiro trabalho americano do autor, a minissérie Orquídea Negra (McKean se tornaria colaborador de Gaiman em Sandman).
Sandman foi, inegavelmente, o trabalho que catapultou Gaiman para o Olimpo da cultura pop. Uma série em quadrinhos com 75 volumes de histórias em que o escritor pegou um super-herói antiquado da DC e virou o conceito de cabeça para baixo, reescrevendo a própria história das HQs no processo. De um aventureiro mascarado que adormecia criminosos com uma pistola de areia, Gaiman reinventou o personagem como Sonho, um ser sobrenatural que encarna uma das forças primordiais do universo, ao lado de seus cinco irmãos de uma família disfuncional: Destino, Destruição, Delírio, Desespero, Desejo e a Morte – esta última a mais carismática e até mesmo sensata dos seis, como convém a um bom conto gótico. Até hoje o material é considerado um marco, um dos “três pilares” responsáveis por demonstrar o potencial dessa mídia para tratar temas “adultos”, ao lado do Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, e de Watchmen, de Alan Moore.
A treta
Em Sandman – e, claro, em parte em O Senhor dos Anéis – a discussão sobre mudanças na transposição para a TV do material original rapidamente pode se tornar um pântano revolto em que algumas ponderações sensatas se perdem no meio de uma inacreditável quantidade de chorume em que se misturam racismo, homofobia, misoginia, todos devidamente disfarçados de “inconformidade com a cultura WOKE” – numa referência à atual predisposição de muitas produções de abrirem espaço para minorias ausentes mesmo que na forma mais superficial de todas, a de escalação de elenco.
A escolha de negros para o papel de elfos. A transformação de Galadriel em uma guerreira em vez da figura diáfana que se viu nos filmes de Peter Jackson. A escalação de uma atriz negra, Kirby Howell-Baptiste, para viver a Morte em Sandman (dado que a personagem nos quadrinhos sempre foi retratada como uma gata gótica pálida como papel), ou de uma pessoa declarada não binária, Mason Alexander Park , para viver a personagem Desejo – esta controvérsia, em particular, é incompreensível quando se pensa que, desde a origem, a personagem já era descrita como “não-binária”, ou, para ser mais preciso, dado que o termo não era corrente na época, como alguém andrógino que trazia em si os predicados de mais de um gênero.
Essa treta acaba nos dizendo respeito porque ela tem muito a ver com o Brasil – talvez um reflexo inevitável da reemergência de um reacionarismo conservador no país nos últimos anos. Gaiman já declarou em seu Twitter que o Brasil foi provavelmente o primeiro país a adotar Sandman e a desenvolver um fandom apaixonado pela saga, continuamente reeditada por aqui em volumes que o próprio autor já comentou serem às vezes melhor editados do que os originais americanos. O mesmo Gaiman, contudo, já declarou que o Brasil também é o lugar de origem da maioria dos fãs reticentes e conservadores (a palavra que ele usou, aliás, foi “estúpidos”) que estão dispostos a discutir com o próprio autor sobre suas intenções e sobre por que qualquer mudança realizada hoje é uma “traição” populista:
“No Twitter, parece ser especificamente um fenômeno brasileiro. Além dali, não tenho essa sensação de pessoas tentando ser mais espertas que Sandman, quando elas claramente nem leram Sandman. Essa é a coisa mais estranha. ‘Ah, sim, nós lemos que você vai modernizar Sandman, então vai ser esse Sandman moderno, com gays, lésbicas, pessoas trans e talvez pessoas negras’. Sim, isso é Sandman. É o mesmo Sandman de 33 anos atrás, então tudo que isso me diz é que você nunca leu Sandman. Essa idiotice em particular, esse sentimento de que você sendo trollado por pessoas estúpidas que não fazem ideia do que estão trollando, é algo especificamente brasileiro.” – disse Gaiman em uma live em 2020 promovida pela CCXP e pela Intrínseca, que detém hoje os direitos dos livros do autor no Brasil.
Propriedade
O interessante nessa discussão é que ela toca em elementos que, fora da academia, não são muito discutidos: a noção de propriedade que a cultura de fandom estimula no consumo de uma obra. A própria palavra “consumo” aí é já um problema, porque é uma interferência direta de uma lógica de valor capitalista em uma questão que é, em última análise, estética. Fãs se sentem parte da construção de uma série como Sandman porque eles foram aqueles que a descobriram em primeiro lugar, que aderiram a seu projeto, que a defenderam quando, por “enes” motivos, outras instâncias de legitimação torciam o nariz para ela – o que é especialmente verdadeiro para o universo dos quadrinhos, até hoje alarmantemente ignorados por uma parcela significativa da crítica e da academia, algo que a popularização dos filmes formulaicos inspirados no gênero nas últimas décadas não ajudou.
Ao mesmo tempo, como lembram Gilles Lipovetsky e Jean Serroy em seu livro A Estetização do Mundo: Viver na Era do Capitalismo Artista, “no decorrer da sua história secular, as lógicas produtivas do sistema mudaram. Não estamos mais no tempo em que produção industrial e cultura remetiam a universos separados, radicalmente inconciliáveis; estamos no momento em que os sistemas de produção, de distribuição e de consumo são impregnados, penetrados, remodelados por operações de natureza fundamentalmente estética. O estilo, a beleza, a mobilização dos gostos e das sensibilidades se impõem cada dia mais como imperativos estratégicos das marcas: é um modo de produção estético que define o capitalismo de hiperconsumo”.
Toca-se aí num ponto complexo. Fãs de Sandman há anos defendem que obras como a de Gaiman são um objeto de arte em si – ainda mais por haverem levado até os limites o potencial criativo daquela linguagem em particular. Logo, sentem ter precedência sobre os demais quando as dinâmicas descritas por Lipovestky e Serroy começam a transformar sua paixão em produto rentável. Ao mesmo tempo, essa defesa da arte é frontalmente oposta ao sentimento de posse e exclusividade que boa parte desse mesmo fandom desenvolveu com o material, a ponto de hoje uma parcela dos mesmos fãs estarem brigando com o próprio autor que criou aquele que amam por ele estar, na ótica distorcida desses idiotas, “subvertendo” o próprio trabalho para “pagar tributo à ideologia da moda”.
São grupos de fãs diferentes? Talvez, mas não importa. A dinâmica existe no interior do fandom e não pode ser ignorada. Uma obra artística está aberta a visões transformadoras, e isso é um fato, o que invalida a noção meio primitiva de “autoridade sobre o material” declinada pelos admiradores. Curiosamente, isso vale também para o próprio autor, cuja presença como produtor da adaptação não era necessária, a bem dizer, para que uma adaptação fizesse outras escolhas – prova é que nem mesmo seu selo de aprovação consegue calar os descontentes que enxergam uma “conspiração WOKE” em tudo que não seja seus próprios gostos de juventude fossilizados há décadas.
Os tempos
Sandman, a série por estrear, existe num cruzamento que é fundamentalmente contemporâneo: é uma adaptação de uma série de obras que provocou ao longo das décadas milhões de reações autênticas de enlevo e maravilhamento. Ao mesmo tempo, é uma propriedade lucrativa pertencente a corporações milionárias. Há um artista garantindo que sua “visão” será preservada em uma adaptação para um meio em que o trabalho é predominantemente coletivo e em que outra corporação gigantesca tenta salvar seu combalido ano fiscal. Nesse contexto, exigir “pureza” é quase cômico, ainda mais quando universo gótico de fantasia tradicional é escorado em uma visão preocupantemente limitada (e pouco discutida) de mundo, euro e “brancocêntrica” ao extremo. Sim, muitas vezes isso é resultado inevitável do momento em que as obras foram criadas, mas querer manter tal estado de coisas quando os tempos mudaram é uma forma inaceitável de reacionarismo.