Um dia desses, sem perceber, cantarolei um samba-enredo bem antigo da escola de samba Bambas da Orgia. Na verdade, a lembrança veio depois de escutar a releitura feita pelo grupo Afroentes, homenageando os autores Paulo da Silva Dias “Jajá” e Delmar Barbosa. O referido samba (de 1995) começa assim:
Gegê, Nagô, Gexá, Oiô, Cabinda
O candomblé é cultuado na Bahia
Somos descendentes de africanos,
Da Nigéria e do Congo,
Moçambique, da Angola e da Guiné,
Príncipe Custódio, velho sábio macumbeiro,
Espalhou pelo Rio Grande fundamentos em yorubá.
Esse samba nos remete à história do Príncipe Custódio. Apesar da invisibilização da história das pessoas pretas, a oralidade cuidou de transmitir e tornar viva a memória de Custódio Joaquim de Almeida, o Príncipe Negro que viveu em Porto Alegre e cuja existência permeia o imaginário da cidade.
Através de recentes pesquisas acadêmicas se tem notícia que Custódio Joaquim de Almeida, ou Osuanlele Okizi Erupê, seu nome no país de origem, Benin, onde era príncipe, teria nascido em 1831. Conta-se que Custódio veio ao Brasil em busca de exílio devido a conflitos de seu país contra o imperialismo britânico e o colonialismo europeu. O príncipe chegou ao estado da Bahia, supostamente, em 1898. A partir daí, peregrinou até alcançar o sul do Brasil.
No Rio Grande do Sul, Custódio viveu em diversas cidades até que, em 1901, por solicitação do presidente do estado e em razão de cura espiritual do então dirigente, o Príncipe, que já ganhava fama como curandeiro, teria chegado a Porto Alegre.
O legado de Custódio é frequentemente conectado ao assentamento do Bará do Mercado Público de Porto Alegre, que foi realizado pelo príncipe com a intenção de abrir os caminhos da cidade. Também é atribuído a ele o mérito pela disseminação do batuque no Rio Grande do Sul, já que as cidades por onde passou têm uma forte presença de adeptos de religiões afrodiaspóricas. Atualmente, Porto Alegre é a capital com maior número de terreiros e com pessoas autodeclaradas praticantes de religiões de matriz africana, ficando à frente de Salvador e Rio de Janeiro.
O aspecto religioso e seu trabalho com o turfe facilitaram a construção desse personagem que manteve contato estreito com a elite porto-alegrense e atuou como mediador entre populares e a alta sociedade. Seu comportamento também refletia um contexto prévio: a provável ancestralidade agudá de Custódio, cujo povo era visto como um grupo que se movia entre os poderosos e os menos afortunados.
A investigação acadêmica sobre a história do Príncipe Negro avança para novas descobertas sobre sua origem e filiação, mas aqui, retomaremos o samba-enredo na estrofe “Príncipe Custódio, velho sábio macumbeiro, espalhou pelo Rio Grande fundamento em Yorùbá.”
Para além da religiosidade, quando penso em Custódio, na história do Bará do Mercado Público, que lá foi assentado para abrir os caminhos para o comércio da cidade e também honrar a religiosidade do povo que aqui trabalha – Mercado que ironicamente abriga um único empreendimento negro, a sorveteria Beijo Frio. Penso sobre isso e me mobiliza a expressão “fundamento Yorùbá”, presente na atuação do príncipe, que vem da cosmovisão africana e do entendimento de que a nossa existência está conectada a do outro.
A cosmovisão africana é ubuntu. É algo mais abrangente que a filosofia, a antropologia, a sociologia e outras áreas do conhecimento. Ubuntu é uma forma de enxergar, conhecer e pensar o mundo. O ubuntu está baseado na ideia de humanidade. É um termo que se encontra em várias línguas banto. Trata-se de duas palavras em uma: “ubu” e “ntu”. A primeira está associada aos fundamentos da realidade, e a segunda à possibilidade de conhecer tudo o que existe.
Em correto descompasso ao Mercado Público de Porto Alegre, no Brasil, o afroempreendedorismo movimenta a economia. No país, 51% do total de empreendimentos é de pessoas pretas, aqui somados negócios formais e informais, negócios que resistem e crescem mesmo sem aporte financeiro ou proteção social. Recente estudo desenvolvido pela RD Station, Inventivos e o Movimento Black Money aponta que o afroempreendedorismo no Brasil movimenta cerca de 1,73 trilhão de reais por ano.
Apesar de sermos maioria populacional no Brasil, afroempreendedores têm menor escolaridade, menor rendimento mensal, estão menos formalizados e possuem menos empregados se comparados aos empreendedores brancos.
Movimentamos 1,73 trilhão de reais por ano e temos menor rendimento mensal. Esse resultado não faz sentido e a resposta para ele está na coletividade revertendo de forma estratégica o lugar de poder. Como comunidade, precisamos nos preparar para protagonizar o mercado com nossas empresas, com nossos projetos, atuando e nos fortalecendo coletivamente. Se individualmente movimentamos tudo isso, imagine!
Segundo a cultura Yorùbá, para que uma pessoa seja verdadeira e genuinamente feliz, é imprescindível que todas as outras inseridas em seu contexto também estejam. Como diz um provérbio xhosa da África do Sul: “Umuntu Ngumuntu Ngabantu”. Ou seja: “Uma pessoa é uma pessoa por causa das outras pessoas”.
A filosofia Ubuntu sinaliza que há uma interconexão entre as existências humanas. E, sendo assim, a condição para essa existência é, necessariamente, uma experiência coletiva.
Foi uma festa para os orixás o que se viu naquele carnaval. Festa de Batuque é o nome do samba-enredo e o meu Bamba não foi campeão em 95 apesar desse axé. Que em 2023 Bará abra os caminhos da minha escola e os caminhos de todos nós para a fartura e realizações. Alupo Bará!
Alessandra Francisco Silveira é advogada, pós-graduanda em Direitos Humanos, responsabilidade social e cidadania global. É mentora de carreira e consultora em diversidade, equidade e inclusão na @_we_are_connected.